Vida: O Sonho como Insubordinação Criativa na Adolescência Autista
Uma reflexão sobre a simultaneidade da dor e como o sonho funciona como "insubordinação criativa" contra o colapso.

Vida
Eu procuro:
Olhos ardendo na paisagem
Pulsos rasgados esvaindo-se em sonhos
Coração deserto fustigado de desgosto
Coluna dobrando-se ao peso do ser
Eu encontro:
O ar pesado de dúvida
O frio súbito da ausência
A chuva breve do entusiasmo
O vento forte da ilusão.
Eu sonho:
O olhar tocado pelo horizonte
Punhos cerrados de encontro à realidade
Coração inventando um oásis na alma
E na brisa em meu rosto a beleza de ser
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo no Corpo Neurodivergente
Três atos, três lugares e três tempos. Este poema pode emprestar facilmente o nome do filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (2022). E o “mesmo lugar” é o corpo da menina neurodivergente que processa o contraste entre sua realidade, seus sentimentos em reação a esta realidade e seus desejos.
O sonho — nessa época percebido como uma fuga da realidade, que demandava um tempo precioso para a ação capaz de construir essa realidade — é o que salva. O sonho funciona como um remendo que impede que essas duas realidades, a interna e a externa, levem esse organismo ao colapso.
Uma das vantagens de não ter uma leitura completa do contexto é não reconhecer os limites da origem e do estrato social. Não são as definições externas que nos limitam; são as internalizadas como valor e moral que podem colocar tudo a perder.
Nesse sentido, a ignorância sobre as próprias amarras foi, paradoxalmente, uma ferramenta de libertação. Sem ter a plena consciência de que o mundo esperava que ela colapsasse sob o “peso do ser”, aquela adolescente teimou em inventar saídas.
O sonho, portanto, deixa de ser alienação para se tornar um ato de insubordinação criativa. É o momento exato em que a menina, cercada pela aspereza da “paisagem” e pelo “frio súbito da ausência”, decide não apenas suportar esses fardos brutos de dor, mas colocá-los na roca da imaginação.
O poema “Vida” é o registro desse processo febril e simultâneo. Ele é o documento de uma tecelã muito jovem que, operando quase no escuro e sem manual de instruções, conseguiu transformar a matéria-prima indigesta do sofrimento sensorial e do isolamento social em fios de luz, dignidade e resiliência. O que lemos agora não é apenas um desabafo; é a prova material do triunfo da invenção de si mesma.


