Um Manifesto Somático: A Gênese do Poema "De Coração para Coração"
Um poema atravessado por duas histórias desvela um pouco mais da elaboração e recepção da comunicação neurodivergente.

De coração para coração
Tua alcunha agora é cúmulo
em respeito aos detritívoros
Pena teres antecipado os
miasmas da gangrena.
Aqui tudo vive.
O átrio ermo é performance
resultante de falhar
uma batida.
Não há falha, é suspensão
temporária para abarcar
mais vida a desfrutar
num golpe só
A manha é, como um punho
fechado, bater sem dó.
A dor se dissipa nos
humores circulantes
apara as cristas
e desopila as cavas
para te mandar às favas
com um nó nas tripas
Sim, um franco espancamento
E o teu miocárdio frouxo
não é páreo
para o meu bater violento.
Contexto e Violência Simbólica
Este poema não pertence a Retrato das Sombras, a obra elaborada entre 14 e 20 anos. Foi escrito em 2017 e sua relação com Confissão e Ao maior tolo do mundo se dá por meio da violência simbólica que ele evoca ao trazer para o corpo a violência dos sentimentos. A memória que os conectou é também relacionada aos ciclos de abuso aos quais uma mulher autista pode ser submetida em decorrência de suas diferenças neurológicas e comunicacionais. Escarafunchar a gênese do poema sem trazer à tona, no entanto, o julgamento que esse tipo de comunicação visceral evoca quando provém de uma mulher é algo impossível.
Isso faz com que, enquanto Confissão reivindica uma história atravessada por dois poemas ( Confissão e Ao maior tolo do mundo) De coração para coração seja um poema atravessado por duas histórias.
O Estopim: Uma Fotografia e a Narrativa de uma Traição
Sua composição foi um evento catártico desencadeado por uma fotografia. Postada em uma rede social a foto puxava o fio de uma narrativa nefasta, que como um pavio acesso se alastrava pelo meu corpo em choque, incendiando-o até a alma. O cenário da foto era um bar, a ocasião um sarau de poesia. Os três personagens se inclinavam para o centro da mesa, numa expressão que denotava a oitiva atenta de uma fofoca boa. A mulher mais jovem era minha amiga e madrinha de casamento. A idosa era um desses colegas de jornada que não viram desafetos por simplesmente serem deixados para trás a tempo. O homem era o marido de quem estava me divorciando.
Sim eu sei, o trio, em tom de intimidade em um espaço público lotado não configura traição. Como disse, a fotografia puxa o fio de uma narrativa e ele se desenleia até o começo do relacionamento amoroso que eu estava encerrando. A jovem, que eu considerava amiga, mas que era na época uma boa colega de faculdade com a qual eu não tinha muita intimidade, se aproximou muito de mim quando comecei a namorar. Assim que o namoro evoluiu para a moradia compartilhada, ela que morava em outra cidade, passou a se hospedar em minha casa quando visitava Curitiba. E sou uma anfitriã que proporciona conforto e boa comida aos hóspedes, porém sem energia para estender a hospitalidade por horas a fio de entretenimento e prosa. Por isso, era grata por ela se dar tão bem com meu companheiro, com quem se entretia jogando cartas, entre outras atividades entremeadas de risos. Quando marcamos o casamento e ela pediu para ser madrinha me pareceu a evolução natural do afeto que me dedicava, e o qual foi coroado com a frase “Minha responsabilidade é muito grande por que se vocês tiverem problemas conjugais minha obrigação como madrinha é ajudar a resolver.” Achei tão fofo. E quando, cerca de três anos depois, cansada de sustentar sozinha a farsa que se tornara meu relacionamento, decidi me abrir com ela em busca de conforto e conselho, ela foi embora da minha casa algumas horas depois de me ouvir em silêncio.
A Confissão Chocante e a Exposição da Vulnerabilidade
Havia meses que ela me visitava com freqüência aos domingos, chegando às 9h da manhã e indo embora por volta das 9 da noite, só quando o meu então marido decidia levá-la. Apesar da minha exaustão e do meu gradativo silenciamento envergonhado de não acompanhar o rítmo, ela se divertia com meu marido, em atividades corriqueiras como fumar o cigarro de palha. Ela parecia apreciar muito sua ritualística masculina que além do cigarro incluía uns shots de cachaça, mas era minha amiga, acreditava eu piamente.
Sem compreender a sua rápida e aparentemente constrangida retirada no domingo da confidência me convidei à sua casa onde pisaria pela primeira vez. Não havia compreendido seu comportamento e precisava muito daquele suporte prometido anos antes. E desta vez eu que ouvi em silêncio e me retirei rapidamente. Sua fala, proferida já da forma resumida que aqui coloco decretava “Fulano é uma rapaz simples do interior que você obrigou a casar e que agora está preso a você, coitado. A culpa é sua”. Esta frase evocou esta imagética de fundo em minha mente, na época dolorida e hoje cartunesca, de minha pessoa em um cartório empunhando uma velha espingarda sob cuja mira ele se sentia compelido ao sim. E essa capacidade de gerar a imagem para incutir a verdadeira dimensão do absurdo àquela fala também lubrificou as articulações e distribuiu adrenalina pelos músculos, prontos a me tirar dali. Mas não fui embora sem antes ela me informar de que , apesar de eu ter pedido segredo, ela havia consultado sua mãe e todas as suas amigas casadas a respeito do meu “segredo”, justamente para poder afirmar com certeza que a culpa era minha.
Nunca me refiz da dor. Não lembro se ela ainda frequentou minha casa. Porém, sei que alguns meses passados ela foi morar com o namorado e trouxe a mãe para viver consigo. Uma grande mudança que requisitava uma comemoração. E para o churrasco ela convidou apenas os casais que sabiam do meu “segredo”. E mesmo morrendo por dentro eu mantive a farsa, completamente ciente de que aquelas mãos dadas e o comportamento “de casal”que meu companheiro insistia em exibir em público era ainda mais absurdo porque ali todos sabiam a verdade. Me senti uma “aberração” exposta em um circo de horrores.
Quando finalmente escrever Perséfone EM Hades me ajudou a dissolver os liames de meu casamento desastroso a separação resultou em um ex- marido e uma ex- amiga. Ou ex-inimiga íntima.
A Revelação da Amizade Parasitária
Eu ainda tentava tornar a separação amistosa quando o confrontei sobre a foto e sobre ter ido com minha madrinha de casamento a um sarau quando a poeta era eu, o carro era meu também e ele poderia ter me dado carona, já que não fui devido a esta questão de transporte. A amiga, que nunca prestigiara uma apresentação minha, segundo ele, estava lá como madrinha de casamento dele, prestando apoio a ele, que precisava muito naquele momento. Eu nunca recebi uma ligação ou uma mensagem dela, que simplesmente desapareceu de minha vida.
Como de praxe, a foto trouxe um emaranhado de acontecimentos que alinhei em uma cronologia mambembe, mas resultando em um narrativa sólida, na qual ficou claro que algumas pessoas são atraídas para a nossa órbita como mariposas para a luz. Elas abusam de nossa hospitalidade, sugam nossas forças e vivem por meio de nós, como parasitas.
Neurodivergência e a Linguagem do Corpo
Escrito, o poema ele foi postado na mesma rede social quase que imediatamente. Lido por um amigo querido e poeta, este me advertiu: “Violência não”, entre outras palavras que evidenciavam a leitura rasa e um pré-conceito a meu respeito, que certamente vinha de ouvir falar, não de me ouvir dizer.
Sob choque novamente, não soube corrigí-lo. Me convenci de que o poema depois de escrito é de quem lê. O “mote” nunca o leria e o escrevi para ancorar a batalha emocional no plano físico, tornando-a palpável , crua e pronta a ser decomposta e não para ser compreendido em sua brutal inteireza.
Entendo que seja difícil ver uma mulher destituir o coração de sua simbologia romântica para transformá-lo em instrumento de aparente violência e poder. Mas julguei, na ocasião, necessário avisar aos abutres de plantão que não eram páreo para esse bater violento que demarca ao mesmo tempo minha força e minha finitude. Este sempre foi um músculo de combate na arena do meu corpo. E me espanca continuamente para processar os humores circulantes e garantir que aqui tudo viva. Apesar da melancolia, companheira de todo mergulho na condição humana, sempre escolhi não lamentar. De onde as bravatas poéticas tecem cotas de malha, costuram placas lamerares, esculpem carrancas para elmos de armaduras invisíveis.
A Alexitimia e o Coração como Intérprete da Emoção
Contudo, para fora do escopo de sua gênese e sua condenação De coração para coração é um poema escrito por uma mulher neurodivergente, cujo transtorno do espectro autista é atravessado pela alexitimia, a dificuldade de compreender e mesmo detectar as próprias emoções. Mas o que o poema atesta, assim como Confissão, é que mesmo não nominadas e formalmente reconhecidas, as emoções são sentidas de forma avassaladora no corpo, como sensações físicas intensas, mas sem uma etiqueta cognitiva clara. O poema, então, pode ser lido como um manifesto somático — uma tradução direta da experiência corporal do trauma e da sua superação.
Para quem tem alexitimia, o corpo fala antes da mente. O coração, com suas batidas e arritmias, torna-se, portanto, o principal intérprete de um estado emocional que não encontra palavras. A comunicação tida por violenta ao subverter a relação do senso comum entre coração e romantismo, não é verbal ou emocionalmente articulada no sentido neurotípico. É visual e social. Descreve o que o corpo (coração) neurodivergente sente em reação ao corpo/presença do outro. Falhar uma batida transcende o sentido biológico imediato e adentra uma travessia neurológica do sofrimento que é perpassada pelo shutdown e pela dissociação. A primeira reação ao choque pode ser desligar o disjuntor para evitar o colapso irreversível do sistema. A emoção, que não pode ser nomeada e liberada aos poucos, acumula-se como energia potencial. Quando finalmente é compreendida ou quando o limite é atingido, ela é liberada de uma só vez com uma força que pode parecer desproporcional para um observador externo, mas que é a soma de todo o dano acumulado. Nesta ocasião a liberação foi “de coração para coração”.
O pensamento autista pode, por vezes, categorizar o mundo de forma lógica e sistemática para dar sentido a interações sociais caóticas e dolorosas. Diante da confusão e da manipulação de uma amizade abusiva, recorrer a uma categorização quase científica, ancorada na biologia, é uma forma prática de atribuir materialidade ao abstrato. Em vez de rótulos emocionais a traidora torna-se uma entidade objetivamente classificada como ameaça biológica, análoga aos detritívoros, mas não merecedora da nomeclatura. O que foi tomado como violência pelo poeta amigo, hoje já falecido, é só uma forma de processar o dano de maneira lógica e inequívoca.
Infelizmente, nesse contexto comunicacional lógico e biológico o “bater violento” do coração que é superação também é a resposta fisiológica de um sistema em modo de sobrevivência. E se o poema documenta a resiliência neurodivergente de uma autista nível 1 de suporte, também documenta o sofrimento extremo e invisível que se manifesta como uma desregulação física. E evidencia que a cura também é um processo corporal — uma recalibração do sistema, que pode ser alcançada de forma mais efetiva por meio da arte.


