TEA Menina- Capitulo I
Parte I de 2. Este excerto de TEA menina é um presente para assinantes, enquanto o livro está sendo revisado.
Minha mãe estendeu o telefone. Ele já não atendia minhas chamadas havia tempo, então ela ligava do telefone fixo e pedia que ele conversasse comigo. Desta vez, assim que atendi, ele disse em tom firme:
-Pare de gritar.
-Mas não estou gritando- respondi.
-Com você gritando desse jeito não vou conversar- ele continuou
-Como assim? Pare com isso. -disse eu, tentando não alterar a voz.
-Olha, eu vou desligar, porque com você xingando assim não dá- o tom era firme, pleno de autoridade.
-Pare com isso, e me pague- a garganta tensionada amarrando um grito.
-Olha, quando você estiver em condições a gente a conversa, nesse nível não tem como- insistia ele
-Do que que você tá falando? ...para com isso- minha voz já alterada não parecia expressar o meu crescente desespero.
Houve outras conversas parecidas. Não sei por que me lembro dessa especificamente. Talvez tenha sido nesse dia que ele falou para minha mãe que havia vendido o apartamento. Ou talvez eu tenha ficado muito tempo analisando a conversa. Ele estava encenando para alguém? Ou estava me provocando apenas? Nunca entendi. Assim como nunca entendi como minha memória funciona. Tem coisas extremamente chocantes que apago, e coisas extremamente chocantes que lembro com nitidez, e não me é claro o critério de memorização. Só sei que se alguém estivesse com ele, veria um homem sensato falando com uma louca que gritava e xingava do outro lado da linha. E havia de fato um grito em mim. Mas a garganta doía em um espasmo que não permitia que ele saísse. Não sei precisar há quanto tempo essa tortura vinha acontecendo. Tampouco posso garantir de memória a reconstituição precisa da ordem dos fatos. Por isso sempre recorro aos registros.
Fechamos o negócio em outubro de 2009. O valor de 15 mil reais, mais a compra de dois eletrodomésticos novos quando eu me estabelecesse em Foz do Iguaçu foi a minha contraproposta ao que quer que ele tenha oferecido. De manhã ele apareceu de surpresa, quando na verdade eu havia pedido que ele viesse à noite no e-mail da contraproposta, que nunca foi respondido. Me pegar de surpresa foi acaso, conveniência, ou parte de um plano? É difícil saber como as pessoas pensam diante de tantas variáveis e discursos não ancorados em uma conduta ética.
Ele comprou um apartamento mobiliado e meu futuro estava em suas mãos, minha vida no porta-malas. E me deixou na casa dos meus pais. Além de me levar, se não me falha a memória, iria pegar minha irmã Joce, que seria uma espécie de testa de ferro em seu negócio, pertencente à franquia para a qual ele trabalhava e na qual ele mesmo não podia ser um franqueado. Essa empresa fornecia serviços de análise de crédito e sua equipe de vendedores vendia esse serviço a pequenos lojistas, de porta em porta, enquanto um empresário enriquecia às custas das solas de seus sapatos. No entanto, os prognósticos de crescimento eram grandes e a ambição dele era chegar aos cinquenta anos com um milhão no banco quando decidiu abrir a própria franquia em Ribeirão Preto, tendo Joce à frente do empreendimento. Para isso ela renunciou a um emprego, devolveu o imóvel alugado, vendeu móveis, e deixou o filho para trás com a avó, até se arranjar na cidade nova. Vendedores são muito bons em vender uma ideia, mesmo que vazia, e ela comprou essa, crente que finalmente teria sua grande chance na vida. O emprego que ela tinha em vista em Foz foi passado para mim e eu começaria em janeiro. Porém, a experiência em Ribeirão Preto não saiu como planejado. Não conheço os pormenores, mas para todos os efeitos a saudade do filho foi determinante para que ela voltasse para Foz do Iguaçu. Teve um grande prejuízo com isso. Borges, como se apresenta meu irmão, ficou devendo algo a ela e a dívida envolvia uma televisão. Quando ela voltou, creio que coisa de uma semana ou dez dias depois, fiquei com pena e devolvi o emprego, o qual ela aceitou de bom grado. Um acerto do coração, mas um erro de cálculo, já que eu não estava apta a conseguir um emprego sozinha. O longo período no qual estive doente havia quebrado algo dentro de mim, e de alguma forma eu não conseguia sequer procurar com afinco, muito menos passar em uma entrevista. Mas ela tinha um currículo capaz de garantir o mesmo emprego em outra loja de materiais de construção com uma grande facilidade. Contudo, Joce é uma pessoa que não desperdiça uma oportunidade, e eu só aprenderia isso no futuro. E esta minha decisão determinou que eu não conseguisse trabalho e renda durante os onze meses nos quais morei em Foz. Por isso, quando não recebi mais os pagamentos das parcelas restantes do negócio, a vida desmoronou.
Creio que os pagamentos começaram a não acontecer a partir de fevereiro. Há um e-mail muito sutil no dia 06 de fevereiro de 2010, no qual apenas envio os dados da conta para depósito. E em 1° de março há uma infinidade de e-mails aferindo que já estávamos em guerra. Em 20 de março, especificamente, há um boletim de ocorrência contra ele, lavrado em Curitiba. Isso por que me registrei no programa de treinamento para novos franqueados da empresa na qual ele trabalhava, o que me rendeu passagens e hospedagem em Curitiba e a única oportunidade de cobrá-lo pessoalmente. O que fiz acompanhada de uma amiga da faculdade chamada Lili. Não sei se ele me deixou entrar ou eu tinha a chave da entrada do prédio, mas de repente estava no apartamento, em pé na sala, Lili do meu lado. Não lembro da conversa breve. Mas cometi um ato falho ao sair: girei a chave para abrir e a tirei da fechadura. Era um hábito. Se a tetra chave estivesse na fechadura quem chegasse não conseguiria abrir do lado de fora. Por isso sempre tirava a chave se estivesse entrando, meu corpo naquela mesma posição no estreito corredor. E antes que eu pudesse racionalizar o gesto, fui agarrada por trás em um típico mata leão, arrastada do corredor para o centro da sala, derrubada e repetidamente arremessada contra o chão cada vez que tentava me levantar em um reflexo defensivo. Ao contrário da atitude brutal, a voz era mansa:
-Fica calma! Fica calma! To fazendo isso pra você não se machucar.
Não sei da Lili nesse momento. Não lembro como me libertei ou me ergui do chão. Tampouco como saí do prédio. Fui à delegacia, ao hospital e ao Passeio Público, mas não sei em qual ordem e se no mesmo dia. E chorava sem parar quando fui atendida na emergência do hospital que suponho ter sido o evangélico. Em algum momento teve um exame de corpo delito. A agressão não deixou marcas físicas. As marcas invisíveis e profundas me levaram ao Passeio Público, onde sentada sob um plátano, caneta e papel na mão, travei uma das maiores batalhas com uma velha oponente: a morte. Levei o conflito existente desde os 12 anos para um terreno no qual eu tinha chance de vencer: a poesia.
Eros e Tânatos
Náufrago em mim mesmo, a procuro
Entre suas pernas o afogamento
Esvazio aos arremessos
que a vida não se desprega num só rasgo,
não se desentranha na descarga
de um único orgasmo
Há sempre um último deleite a ser tragado
E ela sabe
Me recebe
Me insere na argúcia estrutural da prosa,
na poesia cadenciada dos encaixes
Adere dos ímpetos até os ossos,
seus feixes tecidos de névoa e mucosa
E eu apenas falo, falo e falo
até desaparecer
É quando ela se constringe
fecha ao meu redor e secreta
o silencio absoluto.
Mas finge
Sei de cor o repertório dos ardis
que enleia o embuste feminino
quando goza menos do que quis
Dissimulada desabrocha devagar,
desarvora aflitivos perfumes,
entreabre o corolário dos possíveis
e impregnado dos unguentos do ciúme
sou assaltado novamente
por tudo que ansiava abdicar
Resvalo para fora
Ela não chora
Ao afago oferta o calo, nunca o âmago
Cumpre ocultar o desamparo, me visto,
guardo o estilete no bolso
Retrátil acendo um cigarro, degusto,
e ainda tenho o pulso de ostentar a marra
de quem só tirou um sarro
Sem palavra avanço
Ela é como as outras
quer tudo, e não me alcanço.
Nunca fez muito sentido a agressão. Ele estava encenando para quem? Havia alguém nos quartos? Que usos faria dessa encenação? Ser agarrada pelo pescoço de forma tão traiçoeira me atormentou por muito tempo. É difícil descrever o sentimento. Me culpei muito por ter tirado a chave da fechadura. Mas nem combina com Borges supor que eu levaria a chave. Ele é mais do tipo que debocharia da situação, afinal bastava trocar o segredo. A chave por si só não tinha serventia. Muitas vezes me pareceu uma manifestação de força gratuita. Ou um ódio antigo represado. Revivi esse momento por muitos anos em minha mente sem chegar a uma conclusão. Nessa sequência de fatos que não sei se aconteceu no mesmo dia, só o plátano do Passeio Público acolheu minhas ruminações e o desejo de acabar.
Sem saber o que fazer ou ter para onde ir, voltei para Foz onde, realmente, Joce e eu, tentamos fazer funcionar a tal franquia. Mas eu não tinha mais fôlego para vender nada. Bater metas, ver a perfídia ganhar corpo em pessoas que considerava amigas, tudo isso havia me destruído aos poucos durante os três anos nos quais fui vendedora. A persona que criei para habitar esse mundo em particular escoou pelos meus olhos no dia que me sentei na cama, prestes a ir trabalhar e caí no choro para não me levantar por dois anos e meio. E enquanto a luta para ser produtiva e para receber as parcelas do apartamento continuava, perdi o meu bem mais precioso: Teodora. Uma misturinha fofa de cocker e poodle, de pelo abricó. A vida era tão tensa que só percebi seu sofrimento quando ela não quis mais passear e ficou esmorecida em um canto da sala. Disseram que ela tinha erlichiose, a doença do carrapato. O remédio custava 10 reais, e eu não tinha um centavo. Pedi emprestado à minha mãe e ela disse que só tinha o dinheiro da igreja, o qual meu pai administrava. Não sei se era o dízimo deles ou de toda a igreja, ou ainda dinheiro de alguma outra atividade da comunidade evangélica. Ele recusou o empréstimo. Odiava bichos e ainda mais Teodora, que vivia dentro de casa. De algum modo consegui o dinheiro para levá-la a uma clínica alguns dias depois. Sei que foram 150 reais. Joce nos levou na garupa da Honda Bizz genérica de placa paraguaia. Teodora foi no meu colo, enleada em um cobertor, orelhinhas ao vento. Ela recebeu transfusão de sangue e precisou ficar à noite em observação. Quando cheguei à clínica no dia seguinte se levantou cambaleante para me receber. Não havia mais nada a fazer. Em casa coloquei fraldas nela e forrei a cama com plástico para dormirmos juntas. Teve um momento no qual rezei para ela morrer logo. Eu não queria ver aquela luta inútil por mais tempo. Ela morreu no meu colo na manhã seguinte, em um uivo desesperado que jamais esquecerei. Ela não queria ir, eu sei. E enquanto a depositava na cova aberta em um terreno no qual meu pai fazia sua horta, jurei sobreviver. Nunca a morte esteve tão perto e tão distante de mim ao mesmo tempo. Rodava em minha mente como um filme- ou um mantra- a história do cavalo que o dono decide enterrar vivo, mas ele sacode a terra atirada em seu lombo e a pisoteia, até estar em condições de sair sozinho do buraco.
Não sei quanto tempo depois da partida de Teodora decidi voltar para Curitiba. Pedi à Zilda, minha irmã que morava em São José dos Pinhais, que me recebesse por uns dias. Sem um tostão, vendi para outra irmã de Foz, Marlene, minha máquina de costura, minhas formas de bolo, fouet e quaisquer outros utensílios de confeitaria que havia levado comigo e fui à rodoviária comprar passagem. Ao chegar em casa com o bilhete na mão recebi um telefonema de Zilda:
-Sinto muito, mas não posso te receber na minha casa-ela disse assim que atendi.
Pedi por favor, expliquei que não tinha para onde ir. Na minha cabeça não havia como devolver a passagem, e não havia como retroceder. Eu só podia voltar para Curitiba. Chorei. E tudo o que ela dizia era:
- Sinto muito, eu não posso te receber na minha casa.
Assim que me recompus, arrumei as malas e comecei uma luta para conseguir um lugar para ficar. Lili, disse em e-mail um dia antes disso que sua mãe se ofereceu para me pegar na rodoviária e me levar até minha irmã. Expliquei que chegaria de madrugadinha e que minha irmã morava em São José, mas fiquei comovida com a oferta. Dois dias depois, quando avisei que minha irmã não poderia mais me receber e pedi para deixar minha bagagem na casa dela enquanto procurava um lugar para ficar, a oferta de me pegar na rodoviária foi removida. Uma prima da avó que estava no hospital e um tio de outra cidade estariam hospedados em sua casa nesse exato dia, de modo que não havia mais como me pegar na rodoviária, muito menos guardar minha bagagem, para a qual ela sugeriu o guarda volumes da rodoviária. Não consegui explicar que não tinha dinheiro para o guarda-volumes e resmunguei por e-mail algo sobre como as portas se fecham quando a gente mais precisa e segui em frente. Não tinha condições de processar nada que não fosse relacionado à urgência de resolver o problema da hospedagem. Talvez por essa urgência eu não consiga lembrar como Alessandra, outra colega da faculdade, aceitou me ajudar. Nem éramos muito próximas! Em alguma conversa ocorrida meses depois, eu disse:
- Minha sorte é que você se ofereceu para me ajudar.
- Não. Foi você que pediu!- Ela me corrigiu
Que vergonha senti nesse momento. Só lembro de ter ligado para ela assim que cheguei, e a voz de sono me atendeu como combinado por volta das 6hs da manhã. Devo ter ficado em sua casa entre uma semana e dez dias. Em algum momento tive uma das primeiras enxaquecas que consigo lembrar, com náusea e vômito a ponto de passar um tempo deitada no chão do banheiro. Fiquei bastante dependente da sua carona por uns dias, pois precisava economizar o dinheiro do ônibus, e um dia, enquanto assistíamos Bebel, sua filha de 7 anos, nadar, o marido dela, Ronaldo, olhou meu contrato e disse que não tinha qualquer valor legal naquele documento. Me aconselhou a procurar a defensoria pública e pedir ajuda. O que fiz com os parcos recursos que tinha, recebidos de meu cunhado Valdomiro que, na hora mais escura, quando eu embarcava no carro do meu pai para Joce me deixar na rodoviária, ciente de que eu não tinha dinheiro algum, enfiou trinta reais na minha mão dizendo que eu precisaria de um trocado para comer algo durante a viagem.
Na defensoria pública fui encaminhada para a advogada cujo nome não tenho certeza se era Verônica ou Valkíria, a qual reiterou a opinião de Ronaldo. Eu queria processar meu irmão e o comprador para reaver meu apartamento, uma vez que o contrato de venda, na cláusula 3.1, previa que se ele não pagasse, o mesmo estaria rescindido imediatamente. Deste modo, ele não poderia vender algo que não era seu. Mas ele tinha uma procuração de plenos poderes e o contrato não tinha reconhecimento de firma de ninguém, ou mesmo assinatura dele. Já a procuração que assinei dava a ele poder para fazer o que quisesse com o imóvel. Então disse à advogada que estava doente quando dei essa procuração a ele, e contei parte da minha história. Ela saiu da sala em busca de aconselhamento de um colega chamado Cézar e voltou afirmando que o apartamento era meu. Se estivesse vazio, bastava chamar o chaveiro e entrar. Ela me deu um documento para ir ao cartório revogar a procuração dada ao Borges e expediu várias cartas para os endereços conhecidos dele em São Paulo.
Da casa de Alessandra fui direto para a minha. Agora vazia. Ele havia vendido minha mobília. A última parcela que me enviou foi no valor de 950 reais. Creio que foi em julho e da venda da mobília, porque foi quando disse já ter vendido o apartamento e deu a entender que tinha acabado de tirar “suas” coisas de lá. Mas Alessandra se mudou para a Bahia e me deu alguns móveis. Meu ex-namorado, dono da locadora de vídeo na qual fui trabalhar para ter o que comer, me deu alguns armários de cozinha, e creio que um sofá. Meu guarda-roupa ainda estava no quarto, e acho que a cama também. Em pouco tempo o apartamento estava mais bonito do que antes. Fiz um novo vestibular e passei em primeiro lugar no curso de gravura da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, ofertado à noite. O curso de Pintura era à tarde e concluí que eu se quisesse ter uma vida digna teria que trabalhar o dia todo e estudar à noite, como era antes de adoecer. Passei em primeiro lugar nesse vestibular, e entrei no curso confiante, já no terceiro ano, devido ao aproveitamento do curso anterior. Trabalhava na Dinamarca Vídeo que foi uma das últimas locadoras a fechar em Curitiba. Recebia por hora, o que dava cerca de 20 reais por tarde trabalhada, pagas diariamente junto com o dinheiro do ônibus, que eu não usava. Costumava ir e voltar a pé da Rua Nilo Cairo até as Mercês, para economizar.
Uma noite o comprador do apartamento apareceu na minha porta. Tentou abrir e não conseguiu. Não tenho certeza se abri a porta ou vi pelo olho mágico. Sei que houve uma breve conversa, na qual relatei o paradeiro de meu irmão e disse que ele tinha voltado de São Paulo contando muitas histórias.
-É tudo, mentira. Ele é um mentiroso - repetiu enfático o comprador, como se para si mesmo, visivelmente furioso.
Lembro claramente dele indo embora, a figura magra, o sotaque parecido com o carioca, e a ameaça:
- Por 25 mil reais eu mato seu irmão, fique sabendo.
Se disse algo mais não faço ideia. Existem momentos nos quais travo e fico observando a situação como se estivesse de fora dela, em uma espécie de estupor. Ele virou as costas e saiu, para me mandar uma notificação de despejo extrajudicial algum tempo depois. Apavorada fui à defensoria. A advogada, que tenho quase certeza chamar-se Virgínia- ou seria Verônica?- me disse para não me preocupar. Ele entraria com uma ação e nós nos defenderíamos. Não havia nada que nós pudéssemos fazer antes disso. Não achei que isso estava certo, mas não sabia o que fazer e precisava me preocupar com meu sustento.
As aulas na faculdade já haviam começado e eu já tinha superado os subempregos dando aula pelo PSS do Estado quando recebi a ordem judicial de despejo. Conforme o documento eu tinha 24 horas para sair ou seria removida pela polícia. Retornei à defensoria e inteirei a advogada sobre o que havia acontecido. Ela pediu meu cartão de atendimento onde constava seu nome e todos os meus atendimentos naquela defensoria pública até então. Não dei a ela. Assim que o tirei do bolso o papel foi arrancado da minha mão, rasgado e jogado na lixeira à minha frente. Isto feito ela confirmou que eu precisava sair do apartamento naquele prazo estipulado. Não faço ideia da minha reação nesse momento ou como saí da defensoria. Eu não era do confronto. Eu implodia.
No entanto, a ideia de ser escorraçada como um bandido daquela que considerava minha casa me deixou absolutamente apavorada e determinada a sair antes que isso acontecesse. Tinha certeza de que colapsaria de novo se chegasse a esse ponto. E eu não podia perder o controle sobre mim que havia adquirido a duras penas e grandes perdas no último ano. No mesmo dia deixei o apartamento. Minhas coisas foram para a clínica onde eu dava aula, no bairro São Francisco, e fui hospedada lá temporariamente, pois a casa ficava vazia à noite e nos fins de semana. Alguns amigos da faculdade vieram ajudar a empacotar e carregar a mudança. Não lembro exatamente quantos e quais. Mas Taíssa, olhou em volta e disse:
-É uma pena. Este apartamento nunca esteve tão bonito.
Eu não podia processar este pesar neste momento. Precisava estar de pé. Antes de adoecer, e principalmente durante, eu não teria essa resiliência. Mas creio que o foco de não sair escoltada pela polícia me sustentou. Esta nem era a primeira vez que minhas coisas saíram do apartamento como se fossem lixo. Em 22 de março de 2010, as coisas que ficaram guardadas no que era um antigo quarto de empregada foram despejadas de lá, enquanto eu lutava para receber as parcelas do imóvel, nos seguintes termos:
From: borges_system@hotmail.com
Subject: pagto1
Date: Mon, 22 Mar 2010 10:02:39 +0000
Me mande a conta novamente.Vou fazer o depósito na sua conta de R$1000,00 assim que você me passar os dados da mesma.
Seguindo orientação do meu advogado a partir de hoje você só entra no apartamento com uma ordem judicial para retirar suas coisas pessoais. Se está se sentindo prejudicada procure a justiça e terei o maior prazer em te pagar se a justiça assim determinar. Recomendo a você ler o contrato que assinou. Lá está escrito que você me vendeu um apto mobiliado por R$15000,00 sendo que R$2000,00 foram pagos no ato do negócio e o restante parcelado em R$1000,00 por mês sendo que te paguei sempre em dia até este mês de março. Sempre honrei meus negócios e sempre honrarei. Farei o último pagamento em 10/12/2010. Fora a isso existe um acordo verbal entre eu e você sobre a maquina de lavar e mais um item que não me lembro agora qual é, vou te dar + R$1000,00 por estes itens e diga se de passagem estão bem pagos pois estão usados. Este R$1000,00 vou te dar em 10/01/2011. Este será o último depósito que farei pra vc. Quanto às suas coisa que estão na dispensa te dou 6 meses pra mandar alguém com uma ordem por escrito, assinado e reconhecido firma em cartório do seu nome autorizando tal pessoa e retirar o microondas e as caixas que estão na minha dispensa. Se em 6 meses a contar de hoje 22/03/2010 você não retirar vou ter que jogar no lixo tudo, pois vou reformar o apartamento e não tenho onde por. Fora a isso minha querida não te devo mais nada. Vou repetir: está se sentindo prejudicada procure a justiça. E la veremos quem está com a razão. Foi por isso que assinamos um contrato particular de compra e venda. Não vou mais responder seus emails, Não quero mais brigas. Não quero nem falar contigo neste momento. Portanto se você não for a justiça considerarei que vc concorda com que está escrito neste email. Mas vc tem todo o direito de procurar seus direitos se está se sentindo prejudicada.
Que Deus abençoe seu caminho e sua vida
Borges
Este e-mail foi um golpe tão brutal quanto a agressão física. E foi recebido dois dias depois, pois o boletim de ocorrência data de 20 de março de 2010 às 18h28. Além da hora consta que eu não queria realizar a queixa crime, quando na verdade na o policial que me atendeu disse que eu precisaria de um advogado para realizar a queixa crime e que eu tinha seis meses para fazê-lo ou mudar de ideia. Não houve acolhida apesar de eu estar em prantos. O atendimento foi blasé e desencorajador, e não houve uma orientação sobre como eu poderia conseguir esse advogado. Borges, por outro lado, aparentemente tinha a assessoria de um advogado, e estava me encorajando a buscar meus direitos. Porém, não com o intuito de fazer justiça e sim de me desestabilizar diante de trâmites legais custosos com os quais eu não poderia arcar. Na verdade, eu não poderia arcar com a burocracia em si. Foi essa mesma burocracia da existência que me fez chegar ao ponto de vender o apartamento. E parece que ele sabia disso.
Não fiz qualquer documento ou procuração, mas minhas coisas foram retiradas do apartamento de alguma forma. Eram cerca de dez caixas com utensílios de cozinha, e algumas roupas. Quando retornei para o apartamento, autorizada pela defensoria personificada na virgíniaverônicavalkíria, fui buscá-las na casa da Zilda em São José. Estavam armazenadas do lado de fora, sob o beiral da casa, quase ao relento, o papelão visivelmente carcomido pela intempérie. Empilhadas como estavam, à vista da rua, poderiam ter sido saqueadas por ladrões de galinha. Felizmente só dei falta de alguns cachecóis. Havia me tornado uma exímia crocheteira durante o internamento e tinha várias peças únicas, as quais muitas vezes não usava por causa da textura da lã, mas me orgulhava do trabalho e da facilidade de entender gráficos que a maioria das pessoas, inclusive as que me ensinaram crochê e tricô no hospital, não conseguia. Foi uma perda. Muito maior era o desconforto pelo tratamento dado às minhas coisas e o risco que minhas panelas de inox correram.
Na clínica, após me ver sem casa novamente, não foi muito diferente em relação aos meus pertences. Lembro de ter vendido alguns, como os armários da cozinha, que foram para uma colega de trabalho. Outras simplesmente sumiram, como uma cortina azul de tecido forte e encorpado que eu tinha desde a quitinete na qual morava quando adoeci. Não lembro se vendi ou simplesmente abandonei na clínica quando precisei mudar meu trabalho como professora- hoje sei que por problemas de comunicação- para outras duas escolas e aluguei um quarto mais perto da faculdade. Enquanto essas mudanças ocorriam tentei manter o foco em terminar a graduação. Era meu terceiro curso, meu quarto vestibular, e se eu terminasse seriam oito anos para concluir uma graduação. Estava decidida a dar conta desta vez.
Voltei para Curitiba com o claro objetivo de ser uma pessoa diferente e de nunca mais me colocar nas mãos de outra pessoa, como me coloquei nas mãos de Borges. De algum modo passei a gostar um pouco mais de mim. Estava mais magra e me sentindo bonita. Decidi que, pela primeira vez, iria namorar quem eu quisesse ao invés de me contentar com quem me queria. E assim fiz. Quando fui despejada já me relacionava com um colega da faculdade. Me sentia parte do mundo de novo. E por isso procurei uma professora que era advogada e cujo marido e filho eram proprietários de um escritório de advocacia, segundo a própria. Do teor da conversa lembro apenas de uma fala dela:
-E quem precisa de um apartamento para viver?
Provavelmente depois dessa pergunta não registrei mais nada além da minha própria digressão tentando entender o tom da fala e o lugar de onde essa mulher extremamente bem-vestida e claramente privilegiada falava. Ela não assumiu o caso como eu esperava, e sim me recomendou para uma colega chamada Cleusa, e fui ao escritório dela no Batel. Era antiquado, com móveis robustos planejados, em madeira escura. Certamente uma marcenaria cara, mas que naquele momento parecia um tanto fora do tom. Dra Cleusa foi muito educada, me ouviu, e quando eu disse que queria processar meu irmão ela respondeu:
-Não faça isso. É família. Depois você acaba se arrependendo.
Ela também trabalhava na defensoria pública e foi para lá que me encaminhou, onde me defenderia como o que eu era: ré. Só daria conta disso anos mais tarde. Ele não só me tirou tudo como como me colocou na posição de ré.
Segui com a vida e outros dramas no trabalho e na faculdade, decorrentes do que eu passei a considerar uma falta de socialização adequada na infância. Havia me tornado outra pessoa, mais verbal, mais segura e mais expressiva, e aparentemente com mais problemas de relacionamento do que antes. Fui morar com o namorado, e em parte queria esquecer o passado. A história do apartamento me fazia sentir muito burra e volta e meia precisava dissipar, desviar, despistar com afinco da pergunta “como uma pessoa tão inteligente pode ser tão burra?” que parecia surgir do nada em minha cabeça. Essa pergunta trazia uma renca de sentimentos que nem sempre eu conseguia distinguir. Uma amálgama de vergonha, raiva e outras violências voltadas contra mim mesma. Até que um dia, não sei como nem porque o agora legalmente marido me alertou sobre uma audiência relativa ao processo.
A advogada que não sabia de nada por fim me pediu que a encontrasse na audiência. Dra. Cleusa chegou em cima da hora, e quando entramos e nos sentamos diante do Juiz, o novo proprietário do apartamento foi convidado a falar. Não pude prestar atenção porque estava extremamente ansiosa e Dra. Cleusa ainda cochichou ao meu ouvido:
- O que eu falo para o juiz?
-Não sei - respondi perplexa!
E o juiz, no tom que usa um pai furioso na derradeira reprimenda, aquela precursora da punição física, me advertiu. Esta não era minha vez de falar e eu não deveria falar de novo. Não sei se me desestruturou mais o tom de voz ou o fato dele se dirigir a mim e não à advogada que claramente iniciou o diálogo. E eu ainda estava tentando compreender o fato de minha advogada não saber o que dizer para o juiz! Meu oponente estava falando e eu não conseguia prestar atenção nele e no meu próprio raciocínio. E de repente Dra. Cleusa cochicha de novo em meu ouvido. O quê? Não faço ideia. Não tive tempo de entender ou responder, pois o juiz mais uma vez se dirigiu a mim gritando que se eu abrisse a boca novamente mandaria me retirarem da sala e me prender por desacato. Exasperada pelo grito, pela injustiça, pela ameaça, pelo despreparo da minha defensora, levantei-me e respondi ao juiz:
- Pode deixar que eu mesma me retiro.
Ao sair bati a porta com força. Enquanto caminhava pelo corredor me ocorreu que agora sim ele poderia me prender por desacato. A audiência foi no Centro Cívico, ao lado da Prefeitura. E quando alcancei a rua decidi não facilitar caso ele mandasse a polícia atrás de mim. Em vez de caminhar em linha reta pela Cândido de Abreu, optei por fazer um zigue zague, exatamente como fiz quando fugi de casa aos treze anos. Se meu pai não me achou naquela época, a polícia não teria mais sorte desta vez.



