Sustento: o Pão Amargo da Lucidez
Na análise de 'Sustento', poema da adolencência, uma reflexão íntima sobre a exaustão existencial, o peso do 'masking' na neurodivergência e a teimosa busca por autenticidade em um mundo performático

Sustento
Não pode ser só isso a felicidade:
riso tolo sem motivo consistente,
sonhar num auto flagelo constante
e viver de esperança e saudade.
Sem partilhar do mundo abundância,
sem que os filhos sejam bem-vindos;
sendo apenas os erros redimidos
e os sonhos mortos na consciência.
Felicidade não pode ser estar vivo,
comer enfastiado o pão de cada dia,
adormecer e esperar amanhecer de novo.
Deve haver algum prêmio, uma dádiva
escondida nesse conceito que, embora tardia,
alivie a alma que nessa esperança reaviva.
O Pão Amargo da Lucidez: Uma Leitura de “Sustento”
O título deste poema é de uma ironia impressionante, especialmente quando eu sei que a autora só foi compreender de fato a diferença entre ironia e sarcasmo depois dos 30 anos. E, apesar de o título indicar um caminho, o poema segue outro, ao falar do que não sustenta. E, por fim, o que sustenta a vida é a dúvida. Afinal, se o que é dado não basta, como obtemos o suficiente? A jornada se sustenta na dúvida e na esperança, se considerarmos outros poemas da mesma época.
Mas isso é exaustivo. Falta coerência e concretização. E este poema, enquanto erige a dúvida como força motriz, também delineia a exaustão. E o faz expressando um descontentamento moderno e profundo com as definições simplistas do que significa estar vivo.
Ao trazer a questão da maternidade no segundo verso da segunda estrofe, posso deduzir que foi escrito perto dos meus 20 anos, quando concluí que não queria ter filhos naquela condição na qual vivia e que precisava buscar minha educação. Para mim não bastava o sustento físico; eu precisava do sustento da alma, e este estava no conhecimento.
A Recusa da Superficialidade
O poema desvela a percepção de superficialidade que atravessa meu entendimento de mundo desde muito cedo. As chamadas convenções sociais sempre me deixaram perplexa e irritada. Sobretudo irritada ao ter que performá-las apesar do evidente nonsense ou, muitas vezes, da minha própria capacidade de avaliar probabilidades e compreender o benefício deste ou daquele comportamento. A perfídia, infiltrada em minha autopercepção, me impediu por muito tempo de agir em meu próprio favor, com medo de estar manipulando as pessoas ou pervertendo a noção de amizade e lealdade (e ainda assim minhas amizades, em sua maioria, foram predatórias e abusivas, comigo no papel de vítima). Ou seja, por medo de minha própria racionalidade e capacidade de análise, abri mão do meu poder e deixei que predadores me escolhessem e me usassem.
A rejeição veemente da felicidade performática tem também raízes no primeiro estrato social habitado: a família. Sim, em meu lar primeiro vivia-se de aparências e, ao perceber isso ainda criança, minha ojeriza por uma vida performática, em um palco de aparências e convenções arbitrárias e incongruentes, só cresceria e se consolidaria na recusa em participar da farsa social onde todos fingem estar bem.
Sob a perspectiva neurodivergente, essa recusa ganha camadas mais dolorosas. A jovem consciente das vantagens de certas performances também estava consciente o tempo todo de que performava. Esse poema traz, portanto, a confirmação artisticamente registrada de que o comportamento do autista nível 1 de suporte é 100% consciente, desde que ele não esteja em dissociação, operando automaticamente por força do hábito e da necessidade. É para onde a certeza de uma busca por naturalidade nas relações me leva. Eu não queria prever; queria o resultado espontâneo que me daria certeza da verdade dos sentimentos e interesse em mim. Isto nunca veio, claro. E eu sinto que escolhi, em parte, a dor da autenticidade ao alívio do fingimento, que me afastaria da tensa verdade que hoje confronto: a neurodivergência.
A Subversão do Sagrado e o Tédio da Rotina
O poema subverte a imagem sagrada do pão de cada dia. O que na oração cristã é uma súplica por bênção e manutenção, torna-se aqui um símbolo de tédio devastador: “comer enfastiado pão de cada dia”. A rotina não é um refúgio, mas uma prisão de repetição mecânica. Como autista, eu deveria amar repetição e previsibilidade. Contudo, creio que já está mais do que evidente minha dupla excepcionalidade. E esta outra face da moeda rumina a realidade e regurgita o fel da insatisfação.
A rotina cinzenta, sem propósito profundo ou estímulo genuíno, é percebida como uma forma de morte em vida. O “auto flagelo constante” e os “sonhos mortos na consciência” apontam para a luta interna entre o desejo de realizar e as barreiras invisíveis. Quando penso que eu tinha as barreiras sociais de classe e gênero, e ainda as barreiras neurológicas — como a disfunção executiva e o sentimento de inadequação decorrente —, concluo que cheguei muito longe. Tem sido uma jornada e tanto!
A Exclusão e a Esperança Teimosa
Há no poema uma consciência aguda da marginalização: “Sem partilhar do mundo a abundância”. A pobreza sempre me ofendeu. E eu me recusava a aceitar (e ainda recuso) que esse é meu destino. Mas esta abundância do poema creio que seja um conceito mais amplo. Existe um bom tanto de desconexão neste verso. O autista observa a vida acontecer através de uma vitrine inquebrável. Sente-se como o “outro”, aquele cujos frutos não são bem-vindos, restando apenas a redenção dos erros, não a celebração dos acertos.
Ainda assim, “Sustento” não é um poema de desistência. É um poema de exigência. Os tercetos finais revelam que a recusa da felicidade barata não é niilismo, mas uma aposta alta na existência. Se a vida não é só esse comungar cativo, então “deve haver algum prêmio uma dádiva”.
Essa esperança é “tardia”, talvez improvável, mas é ela que segura a bola levantada pela dúvida e incita a busca por essa “dádiva escondida”. E assim, nas entrelinhas do poema, a dúvida e a esperança celebram essa missa baixa para não sucumbir totalmente ao vazio. O poema é esse ritual silencioso, íntimo e um tanto herege que mantém a chama acesa.


