A pátria é comumente chamada de mãe. Quando é mãe, mais do que nação, a pátria é o nosso berço e o nosso lar. E de algum modo nossa relação com a terra na qual vivemos é similar àquela que tivemos com o primeiro lar: o ventre. O que me acolheu era um ventre rígido. A nutrição escassa e as altas doses de cortisol e noradrenalina me colocaram no modo de fuga. Essa mesma relação estendi para as cidades que habitei. Em 2012, quando pela primeira vez travei um diálogo citadino, havia voltado para Curitiba depois de 9 meses, órfã de uma mãe viva. O luto pelos vivos é uma anomalia à qual só a poesia oferece alguma coerência. E com mais bagagem do que da primeira vez, o sentimento de não pertencer era o mesmo. E ainda assim estava impondo minha presença mais uma vez, muito mais consciente de mim mesma, e do desamor que nos unia. As cidades que habitei sempre tomei como adversárias. Exatamente como minha genitora, elas exigiam de mim trabalho árduo e constante por um estipêndio insuficiente para existir. Minha terra natal foi um berço de terra roxa e gente encardida como eu. Quando divisava um cidadão de tênis branco ou chinelo Havaianas clássico de branco ainda identificável, me perguntava como essas pessoas conseguiam a proeza de parecer limpas e frescas, sem a nódoa roxa lembrando-lhes sempre de seu lugar no mundo.
Ilustração feita para o poema Tons de Cinza, de Rui Villani, in: A sul do ibirapuera
A Foz do Iguaçu de minha infância era uma mãe triste, sentada à soleira da porta, vigiando os filhos se encardirem no terreiro, esperançosa de que a alegria da infância os fizesse esquecer do estômago. Três refeições por dia era o que havia para a prole, e nas tardes quentes os rebentos deviam encher a barriga de sol e risos pueris. Estes eu não tinha.
Já a Curitiba de minha adolescência era uma mãe fria, capaz de expor suas jovens filhas ao trabalho infrutífero e aos desejos perversos dos homens cobiçosos de possuir o ouro, a terra e o hímen. Como os bons adversários, essa mãe fria me obrigou a falar. Eu, que não sabia ter voz, balbuciei os primeiros verbos e me fiz tangível. Me fiz carne. Uma carne que mais endurece quanto mais macetada. E para não enrijecer como o ventre que me ofertara o primeiro lar, não lhe dei rebentos. Curitiba não recebeu como oferenda de paz a minha prole, para moldar ao seu sotaque e costumes. Nosso único vínculo era um refúgio de pouco mais de 60 metros quadrados que eu chamei de lar. E ela o requereu de volta, com a mesma frieza com que minha genitora me viu sair de casa por três vezes. Como fugi do meu berço de terra roxa, pretendia fugir da ruína fria dos meus sonhos, mas Curitiba notabilizou meu desterro. Fez dele um evento para deleite de outros adversários.
Porém, se Curitiba foi uma mãe fria para mim, o poema Implicâncias de Aniversário é o grito de um eu-lírico insubmisso. A afirmação do Eu e a resistência à opressão estão no cerne do diálogo citadino.
A busca por liberdade e integridade ainda duraria mais de uma década. E Curitiba tomou de volta tudo o que era dela e peguei para mim, como uma filha , confortável em seu papel de herdeira natural, faria. Só o que fiz de mim é meu. E trouxe para uma nova cidade: São Paulo. Esta é de extremos, como eu. E entre os extremos existem as amplas sombras dos edifícios e das recomendações de cuidado ao trafegar pelas vielas menos frequentadas. Meus pulmões reclamam da fuligem que quando não respiro encarde a superfície rugosa dos móveis da torre na qual me refugiei. Me sinto segura aqui no alto, cabelos providencialmente curtos. E sei que estou de passagem. A cidade, por outro lado, sabe que o que fiz de mim se reverte em palavras e não irei embora sem lenço nem documento.
São Paulo tem sido uma boa anfitriã apesar do preço do café e de suas superfícies cimentadas não proverem os frutos da terra, que custam os olhos da cara como se importados de Pasárgada. A preço de banana só os meus versos, que custam pouco por que emprestam a ilustração feita para o poema de outro Poeta. Tons de Cinza, de Ruy Villani1, no entanto, fala de pertencer e de se apropriar da terra natal pelos caminhos da memória, e eu não tenho memórias de lar, só de me perder em paisagens oníricas. Agora que vejo a verdade que resvala pelas trincas e reside nos limiares, essas zonas cinzas, sei que assim como Rui contempla a eternidade e a partida inevitável em Tons de Cinza, eu aspiro voltar para casa, contemplando a mesma imagem. Onde fica essa casa não faço ideia. O lar, no entanto, está em mim. Sou meu próprio lar. Sou um edifício de palavras sobre as areias do tempo.



