Esta semana sofri um golpe pela internet que levou meus parcos recursos, a princípio, irreponíveis. E me mantive fria como uma pedra de gelo. Talvez seja porque desconfiei desde o início e mantive contato constante com o(s) golpista(s), tentando me convencer a confiar mais nas pessoas e, ao mesmo tempo, absorvendo o impacto aos poucos. Ou talvez seja por que eu me ausento. Bloqueio os sentimentos quando não sei lidar com eles e entro em um modo automático de fazer o que determinei a ser feito. E cumpri todos as determinações e ainda tomei algumas das medidas cabíveis. Em uma pesquisa pela web cheguei a mandar alguns e-mails para o lojista fraudulento. Mas revisei tirando as palavras mais duras. Ainda assim prometi, eu, uma quase ateia, colocar no seu encalço alguns eguns a uma horda de Tatas Caveiras. Esqueci dos Tranca Ruas enquanto ria da traquinagem de usar as crenças alheias a meu favor e ouvia lá no fundo um alerta “O que vai ser quando essa ficha cair?”. E esse fundinho de medo era tudo o que eu sentia. Começou a me assustar. Em outros tempos me culparia, me sentiria a pessoa mais idiota da face da terra e faria a pergunta que permeia TEA menina: “ Como uma pessoa tão inteligente pode ser burra?”. Bem, já tenho quilometragem para saber que às vezes a necessidade faz a burrice. E na verdade sei exatamente onde parei de me achincalhar e sobrecarregar com o peso da culpa. Então, como sempre fiz em cada verso e cada palavra já grafada em minha vida, comecei a me analisar. Como em um sonho eu era o vivente e o observador. E observei meu quase transbordar algumas vezes. Muito rápido o engolimento de choro ao primeiro sinal de embargo na voz! Não era um comando completamente consciente, mas um condicionamento. Notei alguns condicionamentos vindos de fora, impostos por palavras de ordem e timbres ferozes, mas este era interno. Um comando interno e antigo!
No dia seguinte seguia uma água parada sob uma crosta de gelo e fui fazer minha atividade física no núcleo assistencial Bezerra de Menezes. Me atrasei para a Yoga tentando tirar uma mancha de gordura de um tecido e perdi a aula por dois ou três minutos. Recebi autorização para tentar entrar mas já havia começado, todo mundo estava concentrado, não seria correto perturbar. E finalmente chorei. As aulas iniciadas naquela semana pareciam uma presente divino e estavam mexendo em meu corpo rígido, arrebentado e exaurido pelos últimos 5 anos. Precisava disso. Perder doeu. Perder a aula e não os 890 reais.
Voltei para casa com a crosta de gelo trincada. Havia ainda outra oportunidade nesse dia: aula de expressão corporal. E lá fui eu novamente. Quando perguntei à coordenadora se poderia justificar minha falta na yoga e a resposta foi positiva, a gentileza arrebentou o gelo de vez. Tentei engolir, mas não deu. Corri para o banheiro e gritei aquele grito sem som que faz a garganta doer e a musculatura do rosto se deformar. (Quando foi que entendi que o grito audível era inadequado? Aos onze anos gritava a plenos pulmões às vezes só por ouvir a minha alcunha da época “Niña”.) Alguém entrou no banheiro e tratei de alisar a carranca e secar as lágrimas . Voltei para a aula. Por sinal muito tranquila, voltada para a autopercepção. A voz suave da professora e a música ao fundo me colocaram em contato comigo de novo e temi não me conter. Deitada sobre o colchonete senti lágrimas rolarem pelas laterais do trosto e as sequei discretamente, torcendo que ninguém percebesse. Decidi não lutar com a dor sem nome e ressentimento direcionado.
E finalmente lembrei que o que o coração não sente o corpo suporta. Lembrei, por que já havia estudado isso 15 anos antes ao analisar minha postura e a de minha mãe. Nossa anatomia é emocional. E as às vezes ela desaba mesmo estando de pé, encurta para passar no batente das casas alheias, se curva para caber, se contrai para segurar o gemido. Ou o grito.
Em mais de trinta anos de trabalho administrei crises mais complexas do que essa e fui fazer o que precisava ser feito. Em uma delas dei aulas no ateliê infantil o dia todo. E esta foi tão profunda que senti como se tivesse me esvaído e só o oco de mim operasse rumo à coordenação da Fundação Cultural de Curitiba onde o que presumi ter sido uma crise de pânico estava visível em minha face e facilmente detectável por todos. Normalmente engulo o que quer que seja, seguindo esse comando interno de esconder. Na aula de expressão corporal, ao levantar do colchonete e sair da aula, não havia sinal de meu tumulto e da metade deste artigo redigida mentalmente enquanto seguia as orientações pausadas dos exercícios. Comando interno plenamente executado, apesar da catarse dos movimentos.
Não havia acabado ainda, contudo. O complemento à enxaqueca mitigada na madrugada de sexta foi a exaustão de sábado. Não posso dizer que dormi. Era letargia. Pensava em abrir os olhos e levantar mas parecia ter muito sono e meus músculos não obedeciam. Estava a maior parte do tempo consciente o bastante para querer levantar e ciente do que tinha para fazer. Como no colchonete da aula decidi desistir de lutar e esperei passar. No fim do dia o corpo voltou a operar. Repeti pela quinta vez o processo de remoção da mancha de gordura do tecido como se meu corpo não tivesse se arrastado pela manhã e desligado a tarde toda.
Administrei tudo isso ao longo da vida, cuidando para não incomodar ninguém. Quando as crises se tornaram violentamente dolorosas e exigentes da imobilidade total dormi, sozinha, ao lado do meu próprio vômito, inalando o cheiro da bile de ontem. Ainda assim dei muito de mim ao mundo. Do trabalho doméstico com 18 horas diárias de servitude aos 13 anos até agora, servi tudo de mim ao mundo. E ainda servi à musa. Ou melhor, a musa me serviu com o poder da palavra para escrever um destino no qual eu possa ouvir meu corpo gritar e possa confortá-lo. A escrita manteve meu espirito íntegro e já posso conjurar maldições ridículas que me façam gargalhar. Mas meu corpo ainda chora em silêncio, ainda congela-se de medo de sentir. Ainda desliga incapaz de processar a fluidez das emoções e a rigidez de comandos internos que certamente foram ferramentas de sobrevivência. Mas estou cansada de sobreviver. Na verdade, não aguento mais sobreviver. Isso é muito pouco.



