"Síntese": A Anatomia de uma Dor Não Nomeada
O corpo como caixa de ressonância e ponto de convergência entre biologia e mente dissonantes.

Síntese
A solidão é uma mal da alma
doendo ao extremo na carne
Faz o coração sufocar, sedento
de indefinível forma de amor;
deixa o corpo febril, pesado
por carregar tanta amargura
Sobretudo, solidão ata a garganta
mas não silencia as palavras
que ganham vida própria,
enquanto perdem nexo e propósito
Silêncio de fato, nunca chega
E a companhia só aumenta a sensação
de estar perdido errado e só
Assim, a solidão faz do mundo
distante objeto de contemplação
e bizarro e instrumento de dor.
Síntese: A Anatomia de uma Dor Não Nomeada
Com versos brancos e uma linguagem clínica, quase uma anamnese, “Síntese” opera na interseção entre a angústia existencial e o registro neurológico. O texto transcende a lamentação juvenil ou um intento poético qualquer para se tornar uma cartografia precisa da experiência autista não mediada pelo diagnóstico. E, ao fazê-lo, desvela outra intersecção: a da biologia e da psicologia. A dor da alma se materializa no corpo pesado, febril e amargo; a exaustão do corpo se reflete na alma, no pensamento célere e desconexo.
Alguns autistas nível 1 de suporte costumam alegar, pelas redes sociais, que vivem como se estivessem com um permanente resfriado. E fazem tudo o que uma pessoa neurotípica — especialmente uma mulher — “com uma gripezinha” faria. Creio que “Síntese” registrou esse fenômeno.
O Corpo como Caixa de Ressonância
O poema rejeita a abstração da tristeza. Ao declarar que a solidão é um mal que “dói ao extremo na carne” e deixa o corpo “febril, pesado”, a jovem autora funde o poético com o biológico, materializando como sintoma físico as sensações da alma. O corpo não apenas “sente” a emoção; ele adoece sob o peso dela, reagindo a um mundo que é sentido com intensidade excessiva. O que se lê literariamente como uma metáfora de sofrimento profundo é, simultaneamente, a descrição literal de uma sobrecarga sensorial e de um shutdown. Ou seja, a alma arde, e o corpo sobrecarregado desliga.
E ainda há o paradoxo do silêncio ruidoso. O “nó na garganta” é simultâneo às palavras que “ganham vida própria”. O caos mental ilustra o fenômeno do pensamento arborescente e acelerado, típico da neurodivergência, colidindo com a barreira física do mutismo seletivo ou do bloqueio executivo. Há uma dissonância cognitiva angustiante: a riqueza do mundo interno é vasta e caótica, mas a ponte para o mundo externo está quebrada. As palavras perdem “nexo e propósito” não por falta de significado, mas por excesso de fluxo e incapacidade de tradução para a linguagem social normativa.
A Solidão Acompanhada e a Inadequação
Anos mais tarde, eu escreveria que “a solidão acompanhada chega fazendo estráfego”. E chega mesmo. Talvez por isso o poema desmantele a ideia romântica de que a companhia cura a solidão. Pelo contrário, a presença do outro “só aumenta a sensação de estar perdido, errado e só”. Nesta passagem, o “estar errado” não é apenas culpa moral, mas a percepção aguda da própria diferença. A jovem poeta se sabe um elemento estranho no cenário humano, onde a proximidade física apenas evidencia a diferença.
Mas que diferença? Essa foi uma pergunta que comprometeu minha vida por muito tempo. “Onde eu poderia ser diferente sendo tão semelhante?” E o poema grafou esse sofrimento psíquico agudo, onde a solidão deixa de ser “estar sozinho” e passa a ser “estar desconectado” — do próprio corpo, do sentido das palavras e da realidade ao redor — como se, no fundo, eu soubesse a resposta.
Sim, de certo modo eu sabia. O desejo de me tornar uma grande cientista e criar um novo corpo para mim vinha da presunção de que havia algo errado com este. Um novo corpo, que sentisse menos a amargura e não desabasse sob o peso da alma!
O Mundo como Instrumento Hostil
O encerramento do poema eleva o tom para uma filosofia de sobrevivência. Ao transformar o mundo em um “distante objeto de contemplação / e bizarro”, o eu-lírico adota uma estratégia de dissociação protetiva. A escrita desvela sua verdadeira função e o olhar torna-se clínico, quase antropológico: a menina poeta observa a vida através de um vidro, como amostras em um microscópio. Distancia-se para ganhar perspectiva e diminuir a ameaça, palavra a palavra. E assim ela pôde chegar até aqui, escavando esses sítios protegidos pela vergonha de ser quem era, fosse o que fosse.


