"Sereno": A Poesia da Interocepção e a Busca por Equilíbrio
A poesia pode ser um refúgio sensorial. Descubra a relação da busca por serenidade e a interocepção em um poema de escrito há mais de duas décadas.
Foto: Oryanna Borges
Sereno - Versão Original
Busco algo que me acalme
Talvez pisar folhas secas
Deitar sobre flores frescas
Água fresca na ardente carne
Quem sabe toque de sedas
Fria massagem de cachoeiras
Passos macios, mornas areias
Ondas quebrando nas pedras
E talvez em paisagens internas
Haja tons, texturas, odores…
Caminhos, murmúrios, langores
Que proporcionem horas serenas
Repletas de ternura e sentidas
como glorioso presente da vida
A Busca por Regulação Sensorial e Conforto
"Sereno" revela uma necessidade fundamental de autorregulação. Embora evoque tranquilidade, o poema é permeado pela urgência de encontrar equilíbrio em um ambiente que, para os sentidos, pode ser caótico. Os elementos calmantes são predominantemente experiências sensoriais e táteis específicas: o som crocante das folhas sob os pés, a maciez das flores, sua temperatura e aroma. Tudo proporciona um refúgio sensorial seguro.
A água, em particular, evoca um alívio imediato, como um "reset" sensorial. Em muitos momentos da minha vida, o esgotamento era precedido por um intenso desejo de estar na água. Nunca foi sobre aprender a nadar ou me exercitar, mas sobre estar na liquidez morna, no silêncio e na solidão — talvez em um simulacro de ventre materno. Mais tarde, já na vida adulta, nadar e me mudar para o "meio do nada" tornaram-se sintomas de uma sobrecarga que eu interpretava como mecanismo de fuga, eliminando os sonhos de escapismo para mundos mágicos e ilhas desertas.
Sensações que Pacificam e Guia para a Auto-observação
A suavidade, a repetição e a previsibilidade transbordam dos sons e sensações táteis conjurados no poema. Em mim, mesmo agora, essas imagens ainda criam uma paisagem interna relaxante e promovem uma interação ideal com o ambiente. Os "passos macios" se opõem aos passos trôpegos de exaustão e dificuldade de orientação espacial, criando um momento de esperança e contemplação.
"Sereno" ressoa, agora, como um modelo de ação: escrever para processar e transformar sensações e sentimentos. A interocepção do autista é, de fato, diferenciada. Alguns sentimentos só serão compreendidos horas depois de vivenciados. O desconforto físico, principalmente o causado por alterações de ânimo ou da atmosfera social, tende a ser nomeado tardiamente. No meu caso, o desconforto físico era ignorado por horas a fio, se manifestá-lo fosse considerado inapropriado ou inconveniente.
As paisagens internas eram, sim, um ponto de fuga. Contudo, um ponto de fuga transformador, capaz de nomear e dar substância ao que é abstrato e avassalador, traduzindo-o em linguagem concreta. Foi por meio dessa linguagem concreta que pude me apropriar do meu eu hesitante de existir, e finalmente me ouvir. Talvez ouvir a musa, me guiando por um labirinto de sensações.
Um Testemunho de Busca e Transformação
Considerando que este poema foi escrito por uma adolescente autista há mais de 20 anos, ele se destaca como um testemunho que eu precisava reler para encontrar, na linguagem direta e focada nas sensações, uma forma de comunicação onde a clareza e a descrição precisa do que era sentido eram prioritárias.
O poema não é apenas uma lista de desejos, mas uma jornada de autoconhecimento sensorial e emocional. A "serenidade" não é um estado passivo, mas algo que precisa ser ativamente buscado e construído através da interação com o mundo (externo e interno) de uma maneira que seja harmoniosa com a própria percepção.
A estrofe final conecta toda essa busca sensorial e interna a um resultado profundo e quase espiritual: a contemplação da paz. Essa paz não é apenas um alívio, mas uma apreciação profunda e grata da existência, em contraste direto com o estado de perturbação que fez a mesma adolescente bradar "Cala-te fera de minhas entranhas". "Sereno" é, portanto, uma prova do poder transformador das palavras e, em especial, da alquimia produzida pela cadência poética. Para comemorar essa leitura sob uma nova perspectiva, resolvi renomeá-lo: "Interocepção".
Interocepção
Busco algo que me acalme:
talvez pisar folhas secas,
deitar sobre flores frescas,
água fresca na ardente carne.
Quem sabe toque de sedas,
fria massagem de cachoeiras,
passos macios, mornas areias,
ondas quebrando nas pedras.
E talvez, em paisagens internas,
haja tons, texturas, odores...
caminhos, murmúrios, langores
que proporcionem horas serenas
repletas de ternura e sentidas
como glorioso presente da vida.




