Sede: autismo, superdotação e a hiper-empatia de uma vida sem filtros.
Explore a relação entre autismo, superdotação e hiper-empatia. Descubra como a dupla excepcionalidade molda a percepção emocional e a somatização
Sede
Eu tenho sede de viver grandes emoções
A alma pede a poesia que verte da tristeza
Meu ser contém a excitação com sutileza
Mas desejo sôfrega o vigor das paixões
E mergulho em olhares amargos, soturnos
Intrusa, buscando suas dolorosas histórias
E rasgo caminho nas próprias memórias
Para melhor sorver a dor de seus infernos
E às vezes me envergonho de assim ver a vida
E às vezes me engano que é só passatempo
E mais eu mergulho e nunca a contento
E outras vezes mergulho nas minhas feridas
E sinto a tragédia humana latejando em mim
Meu prazer é loucura, tortura sem fimO Vislumbre Abissal
Sentir demais sob o jugo de uma lucidez implacável e de uma complexidade analítica para a qual falta vocabulário parece ser a definição do poema “SEde”. Pelo menos é essa a ação que o atravessa: uma análise do sentir, nada benevolente e tão incisiva quanto o olhar que muitas vezes me tornou inadequada e indesejada.
Eu quis o voo raso, a vida na superfície, mas nasci para os vislumbres abissais. E sentir é um desses abismos; o outro é só mais um mergulho nas profundezas de uma existência alienígena e nunca completamente alcançada.
O que talvez se destaque para além dos assuntos relativos ao TEA já abordados nesta newsletter, é que neste poema, o autismo se manifesta na hiper-empatia e na observação meticulosa do outro — aquela “intrusa” que precisa decifrar os infernos alheios para encontrar o mapa de si nas suas próprias memórias.
O Catálogo de Sentires e a Isca da Empatia
A empatia no autismo não é uma leitura seguida de resposta intuitiva como para um neurotípico, e sim comumente cognitiva. Mas ela também pode ser afetiva, carregando aí a dubiedade da palavra que é substantivo e verbo, significando que a empatia é um afeto que afeta. Ou seja, a empatia para o autista é, sim, aprendida. A dor do outro é parte de um enorme catálogo aditivo de sentires alheios. Mas ele não basta para compreender a dor do outro. Não se converte em uma receita ou método de leitura do sentir alheio. Possibilita, claro, navegar pelas emoções humanas sem chamar muita atenção. Mas, em muitos casos, este catálogo funciona, isto sim, como uma isca para sentires mais interessantes ou relevantes nos quais aplicar os saberes acumulados. Para estes, as convenções sociais não necessariamente possibilitam o mergulho, pois convenções são a superfície de uma trama invisível. Para alcançar — e ser afetado pela — empatia afetiva, existem duas vias: pela necessidade ou pela manipulação. No caso da manipulação, entra em ação a famosa ingenuidade autista, e esta é uma ação externa. Já a hiper-empatia é manejada pela necessidade, que é uma resposta interna. Pelo menos assim creio a partir da experiência.
O Porto Seguro e a Investigação do Inferno
Desde muito cedo percebi que podia sentir a dor do outro, mas relacionava essa habilidade à profunda conexão unilateral — e é importante frisar — com minha mãe. A dor dela era íntima, seus estados de espírito me contagiavam e eu inclusive julgava minhas irmãs, especialmente as menores, por viverem aos risos e não respeitarem esse sofrimento atroz de D. Maria.
Contudo, foi há cerca de 8 anos que essa habilidade de sentir a dor do outro me deixou atônita e assustada. Eu era professora do ateliê de pintura e essa aluna, por quem tinha muito apreço, começou a me espezinhar com projeções pautadas nas suposições inerentes ao meu signo, que por acaso também era a marca astrológica de seu filho adolescente, com quem vinha tendo dificuldades. Enquanto ela projetava em mim suas dificuldades maternas e seus traumas pessoais, percebi que cutucava as feridas dos meus traumas emocionais e que o afeto que me ligava a ela uma hora não seria suficiente para evitar a reação. E esta reação, além de afastá-la, também poderia causar o afastamento de outros alunos, dada a união da turma cujos laços de amizade se firmaram por anos. Isso causaria um rombo em minha imagem profissional e um rombo financeiro. A solução que encontrei foi mergulhar em uma “investigação profunda”. Mapeei a vida dela, as frustrações de carreira, a relação com o filhos e marido, e a biologia da Artrite Reumatóide. Revisitei cada memória de nossa convivência pescando informações que nem sabia ter retido ou que nunca havia imaginado que um dia comporiam um conhecimento quando encadeadas com outros dados.
A Somatização: Quando o Outro se Torna Corpo
Após uma semana de hiperfoco e imersão nos infernos dela, meu corpo reagiu de forma extraordinária: acordei com os sintomas físicos exatos da aluna: juntas inchadas, dor insuportável, e me vi no processo de “descongelamento” matinal que me custou meia hora para descer uma escada. Foi uma vivência física da patologia dela que durou apenas um dia, desaparecendo sem deixar rastros médicos, confirmando que não era uma doença minha, mas uma somatização empática extrema.
A Catarse e o Luto pelo Sentido
Tendo em mente esta história de minha vida neurodivergente, “Sede” torna-se uma estrutura rítmica a revelar o esforço para organizar o caos sensorial. O “prazer” mencionado no desfecho não é o da alegria comum, mas o da catarse: a descoberta de que a tortura de sentir tudo tão intensamente é, também, a fonte de uma potência criativa. E da mesma forma que conto histórias hoje para elucidar uma condição neurodivergente tardiamente diagnosticada, eu absorvia histórias quando jovem para aprender. Ainda muito menina cultivei esse orgulho de saber que eu aprendia com o erro dos outros. Eu aprendia apenas observando. E eu aprendo melhor com uma história.
E o poema revela exatamente isso: o mergulho nas histórias alheias suscita o mergulho nas próprias memórias, de modo que o ciclo criativo se revela claramente na história que hoje compartilho. No caso da aluna, eu reagi com o cérebro. No caso de minha mãe, eu sofria um contágio emocional. Algo a ver com os neurônios-espelho — as células cerebrais que nos permitem “refletir” a ação e o sentimento do outro, e que em mim parecem operar sem filtros de segurança — assunto que ainda não domino e por isso prefiro não me aprofundar. Mas o fato é que sinto a tragédia humana latejando em mim. Não se mergulha na vida de uma mulher como aquela — extraordinária por sinal— e se sai incólume. O mergulho no outro deixa marcas. E por vezes, quando mergulhamos em nós, buscando o consolo de uma entidade conhecida, nos deparamos com o vazio. As dores cotejadas resultam em uma dor universal, que funciona como uma lente através da qual se vê pouco sentido na existência. Especialmente a longo prazo. E é difícil viver no agora.



