Poesia e Neurodiversidade: Dois 'Eus', Uma Alma em Autodescoberta
Desvende o "Eu" em uma jornada poética que explora a autodescoberta e a força de uma mulher antes e depois do diagnóstico transformador. Mergulhe em versos de dualidade, fé e aceitação.
Esboço: Oryanna Borges
Eu Tenho uma personalidade de polos opostos, E por ambas sou atraída com a mesma intensidade, Puxada por forças tão minhas que estão além de mim. Tenho diante dos olhos todos os caminhos expostos: O sussurro do bem e os dedos veludosos da maldade, A solidão e a multidão de palavras que a acompanham, A sabedoria a ser alcançada tão perto do fim. Assumi a complexidade de tudo o que me rodeia E a insatisfação de conter tudo e nada alcançar. Sou mutável e irreconhecível como as dunas, Sou o arrebatamento de um fogo que arde sem cessar, Sou a serenidade da intensa fé que teimo alimentar.
O Grito Adolescente
"Eu" é mais um reflexo pungente da busca por identidade em meio a uma experiência interna atípica e não compreendida. A intensa dualidade e o conflito interno, ouso dizer que foram criados por uma tentativa externa de conter minha natureza inquiridora desde a tenra idade e reforçada pela ideia de um Deus onisciente e incapaz de respeitar minha privacidade. Para uma adolescente neurodivergente sem diagnóstico, essa dualidade passou a representar a luta para conciliar um mundo interno complexo com as expectativas e normas sociais. O que pode parecer "polos opostos" para aquela menina de 14 anos agora parece ser simplesmente a manifestação de traços neurodivergentes (como a intensidade de interesses, a variação de energia, ou a dificuldade em navegar nuances sociais) ainda não nomeados ou compreendidos. A sensação de estar sempre dividida entre meus reais interesses e impulsos e o que era esperado de mim é, ainda hoje, parte de um sentimento de inadequação. A natureza neurodivergente não pode ser controlada racionalmente, até porque, em muitos momentos, características neurodivergentes se sobressaem a qualquer imposição social quando há desregulação emocional ou sensorial.
A sobrecarga sensorial e cognitiva é evidente em "Tenho diante dos olhos todos os caminhos expostos". Para mentes neurodivergentes, o mundo pode parecer excessivamente "exposto", com muitos estímulos, informações ou possibilidades que são difíceis de processar ou priorizar em tempo real. Eu até mesmo uso, em TEA Menina, a metáfora da roupa nova do rei para expressar o quão desnudas as estruturas sociais podem se revelar para uma pessoa neurodivergente e o quão violenta é a retaliação se a pessoa em questão for do sexo feminino (ou fosse, há 40 anos) e ousar a apontar que o rei está despido.
De certa forma, este é um poema que expressa uma capacidade analítica aguçada freada por um processamento ineficaz e, talvez, uma falta de propósito. É difícil alcançar qualquer coisa sem uma trajetória definida e sem saber navegar e organizar a confusão interna. Isso gera uma sensação de instabilidade e de desconfiança da própria capacidade de estar no mundo. Porém, há uma fé como ancoragem. Uma fé inabalável que transcende o Deus indiscreto e se alinha com a ideia de bom e belo, ainda que este belo não pudesse ser percebido em mim mesma.
Scarlet Moon: design de personagem, 2019
Eu: Versão 2025
Tenho uma personalidade de polos opostos
e por ambos sou atraída com a mesma intensidade.
Puxada por forças tão minhas que estão além de mim,
tenho diante dos olhos todos os caminhos expostos:
O sussurro do bem e os dedos veludosos da maldade,
A solidão e a multidão de palavras que a acompanha,
A sabedoria a ser alcançada sempre tão perto do fim.
Assumi a complexidade de tudo o que me rodeia.
Sou a insatisfação de conter tudo e nada alcançar.
Sou mutável e irreconhecível como as dunas,
Sou o arrebatamento de um fogo que arde
e a serenidade da intensa fé que teimo alimentar.A Perspectiva Pós-Diagnóstico
A versão de 2025 é mais acolhedora com o que considerava bobagens da adolescência. Pelo menos na leitura, que não exigiu grandes mudanças na escrita original. Assim como o diagnóstico não apaga as características, mas oferece uma lente para compreendê-las e nomeá-las, meu olhar pode perceber a menina que fui e abraça-la. A manutenção da ideia de "polos opostos" e a atração por "ambos" ainda está presente em minha vida, mas agora, com o diagnóstico, posso compreender que essa não é uma falha, mas sim uma característica de funcionamento cerebral somada a um condicionamento social. A luta continua, mas talvez com menos culpa e mais clareza sobre a origem dessa dualidade. "Puxada por forças tão minhas que estão além de mim" agora pode ser interpretado como "além do meu controle consciente, mas inerente à minha neurobiologia". O diagnóstico oferece um nome para essas "forças", o que é libertador.
A sabedoria a ser alcançada sempre tão perto do fim, ou cinco minutos depois, ou mesmo cinco anos depois, é também parte de meu funcionamento. Jamais darei as respostas certas na hora exata, mas as procuro ainda. E às vezes posso rir quando as encontro.
Agora que compreendo quem sou e abracei meu propósito de escrever, "a insatisfação de conter tudo e nada alcançar" pode ser ressignificada. Na verdade, mesmo que por um caminho tortuoso, cheguei aonde devia chegar e estou apta a alcançar o que eu quiser. A "serenidade da intensa fé que teimo alimentar" permanece como um pilar. Essa fé se transformou em uma confiança em minha própria jornada e na resiliência de minha mente neurodivergente. Tenho esperança de um futuro onde possa florescer autenticamente.
Qual versão de 'Eu' ressoou mais com a sua própria jornada de autodescoberta?




