Poema 'Sangria': Uma Análise Profunda sobre Dor e Dissociação
Dissociação, shutdown e o poder da escrita como espelho da alma

Sangria
Não há lágrimas nem soluços
Mas gemidos agudos ecoando
Nas profundezas da mente, castigando
meu coração agonizante, convulso
Não há muros nem correntes
Mas os sonhos ricocheteiam
E como vivo, revoltosos chicoteiam
As asas que sangram dormentes
Mas não há revolta nem comiseração
A mente voa, se a alma não
Fratura e Fusão: Anatomia da Dissociação em Três Poemas
Uma análise aprofundada dos poemas “Sangria”, “Shutdown” e “Ecos” revela não apenas temas recorrentes, mas um complexo mapa de estratégias psíquicas diante de uma dor avassaladora. Através da imagem persistente das “asas”, podemos traçar um contínuo que vai da agonia à desintegração, e de seu contraponto, o poder.
Contexto e Ressonâncias: “Sangria” em Retrato das Sombras
O poema “Sangria” não foi pareado com “Ecos” na elaboração original de Retrato das Sombras. A divisão capitular da obra — Penumbra, Bruma, Eclipse, Plenilúnio e Aurora — oferece, no entanto, uma pista. “Sangria” pertence a “Bruma”, enquanto “Ecos” está em “Penumbra”. Se considerarmos uma sequência temporal, o capítulo “Bruma” sugere um sofrimento mais agudo, um vagar sem rumo onde a capacidade expressiva é vencida pela dor. Poemas deste capítulo, como “Solidão”, “Lágrimas” e “Concessões”, apresentam o sonho não como fonte de alívio, mas de tormento; um recurso que mais exaure do que sustenta.
“Sangria” parece falar exatamente dessa exaustão, do sentimento de ver a energia vital vazar sem finalidade. Ao me deparar com o verso “as asas que sangram dormentes”, encontrei um padrão expressivo que retumba no futuro — hoje um passado menos remoto. Por volta de 2010, escrevi o poema “Shutdown”, que dialoga diretamente com essa imagem.
Quando as Asas Deixam de Voar: O Diálogo com “Shutdown”
Shutdown
Desintegração é a ordem
Posto-me nua à janela
sem causar alvoroço
Inexistência
emparedada no cimento
sem a propulsão da dor
A ficção das asas
abandonada na cadeira
entre outros destroços.
E o vazio estanque
prestes a vazar
em algum clamor
Penso, esquecida,
incrustada na moldura
de uma vida nula
Sem esboçar vigor
ou traço de candura
que sustente um versoA correlação entre “Shutdown” e “Sangria” é profunda. Eles podem ser lidos como dois atos do mesmo drama: se “Sangria” é a hemorragia, “Shutdown” é o vazio que resta quando não há mais nada para drenar. A imagem das asas evolui da dor (”sangram dormentes”) para a nulidade (”a ficção das asas / abandonada na cadeira”). O potencial de voo não está mais apenas ferido; foi descartado como uma ilusão.

Anatomia da Fratura: A Dor Indizível em “Sangria”
A força de “Sangria” reside no cenário avassalador de dor que constrói. O poema evoca o antigo procedimento da sangria, perigoso e ineficaz, como uma metáfora para a hemorragia da alma. Essa ausência de sinais visíveis de dor, em contraste com a tortura interna, parece ser um drama particular do autista — uma prisão formada por um sofrimento que o corpo não consegue identificar, nomear ou expressar. É o grito represado.
Nesse estado, a dissociação empoderadora, que integra a Sombra, talvez não seja possível. Pode haver um “congestionamento” neuronal que impede o acesso a uma consciência mais ampla, forçando o ser a permanecer nos voos rasos da razão. A dissociação em “Sangria” é, portanto, uma fratura de emergência. A alma, o centro criativo e emocional, fica paralisada. A mente, o intelecto que mapeia o território inóspito, escapa para o abstrato como única forma de sobreviver.
Espelhos Opostos: A Dissociação como Fratura (”Sangria”) vs. Fusão (”Ecos”)
Quando comparados, “Ecos” e “Sangria” se revelam como dois lados da mesma moeda. Em ambos, o gatilho é uma dor que ameaça fragmentar a consciência, e o custo final é a perda de uma vivência plena. A diferença crucial reside na natureza do ato dissociativo:
Em “Ecos”, a dissociação é um ato de fusão e poder. O eu-lírico possui agência e controle, utilizando a fusão com a Sombra como uma estratégia para alcançar a invulnerabilidade. É um processo quase induzido, composto de ações conscientes e inconscientes.
Em “Sangria”, a dissociação é um ato de fratura e fuga. O eu-lírico é passivo, vítima de processos internos. A quebra é uma consequência inevitável, um colapso onde a mente se solta para não ser destruída, resultando em um estado de agonia contida e paralisia.
A dor em “Sangria” é tão intensa que leva a prejuízos funcionais e à amnésia dissociativa. Não é apenas uma drenagem, mas uma fratura cujas sequelas se assemelham a uma amputação da memória, onde não cabem próteses, apenas suposições.
Em resumo, se “Ecos” é a história de quem, como Batman, decide usar a escuridão como uma capa, “Sangria” é a de quem está preso nos escombros e cuja mente escapa pelas frestas, porque o corpo e a alma não conseguem mais se mover. Ambos são testemunhos eloquentes das complexas estratégias que a psique utiliza para não se desintegrar.


