Perplexidade: Um Diário Íntimo de Sobrevivência
Quando o escuro é refúgio e a porta, ameaça: Uma análise da "Perplexidade" sob a ótica da neurodiversidade e da Teoria das Colheres.

Perplexidade
Queria que o escuro desse descanso
Me trouxesse ternura e alento
E no silêncio viesse o murmúrio denso
Da felicidade que persigo e pressinto
Mas o escuro me traz o tormento
Da minha silenciosa melancolia
E por ironia preciso de sombras
para ocultar essa negra tristeza
E amaldiçôo toda a porta que se abra
para desnudar a minha avareza
Deixo então o pranto estancar a agonia
E palavras ébrias soltarem da garganta
A revolta que no escuro me faz companhia
E a amargura que com o pranto brotaA Metáfora da “Porta”
Uma porta se abrindo raramente é algo neutro. Na experiência autista, a “porta” é uma fronteira. Quando jovem, eu me sentia sem fronteiras, sem barreiras entre mim e o mundo.
Quando, por volta dos 30 anos, um poeta decidiu me ofender me chamando de mercurial e belicosa, fiz uma pesquisa profunda sobre o que significava ser mercurial. Descobri que o planeta Mercúrio não tem atmosfera e, por isso, tudo o que vem do espaço se choca contra sua superfície. De outra perspectiva, o elemento químico mercúrio, por ser altamente responsivo às mudanças de temperatura ambiente, também cabia no adjetivo, que deixou de ter um significado ofensivo e passou a compor, de certo modo, minha autopercepção.
De algum modo, sobreviver demandou me tornar belicosa e sair da encolha, sair do olhar de esguelha para o encarar de frente e fingir que não havia um permanente sentimento de vulnerabilidade. Em momentos de sobrecarga, hoje reconheço, a sensação é mais nítida e assustadora. É como aquele sonho que acredito que todo mundo já teve um dia: o de estar nu ou seminu na escola.
A Metáfora da “Avareza”
Por isso a avareza. A avareza como o espaço-tempo exíguo onde poderia estar só, suspensa das demandas do mundo. Maldita a porta que se abre antes que eu possa tomar fôlego?!
O que uma pessoa autista, vivendo em constante sobrecarga, guardaria com tanta “avareza”?
Energia. Silêncio. Solitude.
É a avareza descrita pela Teoria das Colheres (Spoon Theory), criada por Christine Miserandino. Ela usou as colheres como uma metáfora visual para unidades de energia. Embora a teoria tenha nascido para explicar uma doença crônica como o lúpus, ela foi rapidamente adotada por muitas outras comunidades que vivenciam uma limitação de energia “invisível”.
Segundo essa teoria, pessoas neurotípicas muitas vezes parecem ter um suprimento infinito de energia (colheres) para tarefas sociais e executivas. Para muitos autistas, essa energia é um recurso extremamente limitado e precioso. Cada interação social, cada tarefa, cada vez que é preciso “filtrar” um ruído ou uma luz, “custa” uma colher.
A avareza protegia um recurso vital. Não é sobre ganância, é sobre sobrevivência. É o instinto de proteger desesperadamente as poucas colheres que restam sem gastar essa energia com a intrusão da “porta”.
O “Eu” Autêntico, o self não-mascarado, também é guardado com avareza. Mostrar-se autenticamente em um mundo que não nos compreende é arriscado e exaustivo. Custa energia e abre espaço para a dor da rejeição. É mais seguro ser avarento com o próprio eu, escondendo-o atrás da negra tristeza — a exaustão do masking — do que “desnudá-lo” para o mundo.
A avareza é a gestão defensiva e exausta de recursos internos que são constantemente drenados pelo simples ato de existir. É o desejo profundo de dizer: “Eu não tenho mais energia para dar. Por favor, não me peça. Não abra essa porta.”
Quando o poema termina com o “pranto” e as “palavras ébrias”, é o que acontece quando a avareza falha. A porta foi arrombada, os recursos se esgotaram e o sistema entra em colapso. Este é o meltdown. “Perplexidade” é um meltdown poetizado.
A metáfora da avareza no poema é uma descrição perfeita de um Spoonie: alguém que vive pela Teoria das Colheres. Uma pessoa que precisa proteger de forma “avara” suas poucas colheres e “amaldiçoa” qualquer coisa que ameace gastar esse recurso precioso e limitado.
Mas, claro, houve um tempo em que o poema era lido apenas como uma bobagem adolescente. Meu amigo Max, um homem de cerca de 40 anos, escreveu quando eu tinha 23, em meu caderno: Perplex(idade), renomeando o poema com essa visão deletéria de uma experiência que hoje eu, honestamente, não sei como suportei.



