"Ousadia": A Força Inquebrável de Uma Alma – Reflexões sobre Resiliência e Neurodiversidade
Poema, escrito entre 1993 e 1998, carrega a essência de uma fase da vida que muitos chamam de "pueril". Versos "quase perfeitos" que em sua métrica acidental, revelam força e coragem.
Exposição Olhar Frida Kahlo, em 2014 (creio). Curadoria de Humberto Tutti
Ousadia
Eu facilmente não me satisfaço
Já consegui muito do que ousei sonhar
mas preservo a ousadia de acreditar
que é pouco comparado ao que mereço
Prossigo, sempre fiel à minha crença
Amparada pelo entusiasmo vou pagando
o alto preço que a vida vai cobrando
cuidando que a esperança não pereça
E aviso aos tolos que me contrariam
que sou extremamente perseverante
e lamento pelos que não apreciam
quem tem por si mesmo tamanho respeito
e se empenha na busca, firme e insistente,
do que deseja e considera seu direito
A "Ousadia" da Sobrevivência: Um Poema Que Desafia Expectativas
O soneto "Ousadia" compartilha a página e o mesmo sentimento de puerilidade que permeava o poema "Fábula". Diferente deste, "Ousadia" é um decassílabo quase perfeito. Quase, porque há uma dúvida no décimo terceiro verso. Eu não domino tecnicamente a métrica; meus decassílabos ou dodecassílabos são puramente acidentais, pois não sabia nada de métrica nessa época. Expressar isso talvez se faça necessário — pelo menos em meu condicionamento de me explicar e justificar — ante a possível arrogância infiltrada nos versos da adolescência. Mais do que autoafirmação, o soneto é um testemunho de resiliência e a afirmação de uma força que eu nunca havia detectado até agora. Sempre soterrada por culpa, vergonha e a necessidade de ser menor para caber nas expectativas alheias, esse tipo de autoafirmação ficou reservado como "bobagem" de uma fase da vida que todos vivenciam.
Além da Rebeldia Adolescente: Neurodiversidade e Sobrevivência
Contudo, eu não lidava apenas com a rebeldia e a reviravolta hormonal de uma adolescente comum. Além de neurodivergente, fugi de casa para poder estudar, pois meu castigo por ser "perguntadeira" e racional seria cercear meu acesso à educação. Para sobreviver, fui doméstica, naquele regime salutar de 18 horas trabalhadas praticado décadas atrás.
Sempre considerei minha autoestima muito frágil. Eu provavelmente me encaixo em um quadro de disforia sensível à rejeição, comum em neurodivergentes, e ser julgada nunca foi fácil. E isso não melhora sendo doméstica aos 13 anos, na casa de estranhos que não veem o empregado doméstico como ser humano. Quando essa situação mudou, tive dificuldades de entender meu lugar em uma condição de maior respeito e liberdade. Mas certamente mudar de patrões foi um grande salto em minha qualidade de vida e me possibilitou, de fato, voltar a estudar.
A Ousadia Como Direito e Dignidade
E embora eu não lembre, creio que esse poema se refere a essa grande mudança. Nele, a "ousadia de acreditar" transcende um mero traço de personalidade. Para uma adolescente em minha situação, sonhar e conquistar ( a capacidade de estudar e sobreviver) já era um feito imenso. No entanto, a declaração de que isso é "pouco comparado ao que mereço" revela não arrogância, mas uma visão de mundo e de futuro que desafia as limitações impostas pelas circunstâncias. É uma afirmação de valor inerente, não reconhecido externamente, mas profundamente sentido. A ambição aqui é por dignidade, por um futuro que justifique a luta.
O "alto preço" adquire um peso literal e existencial: o trabalho doméstico exaustivo desde cedo, a fuga de casa, a solidão, as dificuldades financeiras e emocionais de uma vida desamparada. O "entusiasmo" que me amparava por meio da escrita era vital para não sucumbir. A frase "cuidando que a esperança não pereça" é um mantra de sobrevivência diária, tão importante quanto outro: "prefiro sofrer nas mãos de estranhos do que nas mãos daqueles que deveriam me proteger". Era uma luta consciente contra o desespero que poderia facilmente se instalar.
Autoafirmação e Resistência ao Preconceito
A "ousadia" e o "respeito por si mesmo" ganham um contorno especial. Para uma pessoa autista, que frequentemente enfrenta incompreensão, preconceito e a necessidade de "mascarar" para se ajustar a um mundo neurotípico, a capacidade de se autoafirmar e se respeitar é uma vitória monumental. E de algum modo, eu sempre achei caminhos para burlar minhas dificuldades e driblar o preconceito alheio. Sim, há uma certa "superioridade moral" ao chamar de "tolos" os que me contrariavam ou duvidavam do meu potencial. Não posso negar que os considerava néscios, energúmenos e cruéis. "Tolos" é um eufemismo para os predicados que eu era capaz de empregar a respeito daqueles que me negavam um direito fundamental, como se fosse um capricho ou algo supérfluo. Só alguém que lutou por essa base mínima talvez possa efetivamente compreender o "empenho na busca" em uma luta diária para garantir o que muitos consideram garantido.
Essa postura já me custou a pecha de soberba, mas agora sei que não é egocentrismo, mas a voz de quem precisa se afirmar constantemente em um ambiente hostil ou indiferente. É a construção de uma identidade através da autodeclaração. Não há, muitas vezes, lugar para a autopiedade, para o detalhamento da dor, e sim um direcionamento da energia na resposta interna a essas dificuldades. Assim como minha versão "perguntadeira" a "versão sobrevivente" focava na lógica e na resolução, e menos na exposição emotiva das circunstâncias externas. O sofrimento está lá no "alto preço" e na necessidade de "cuidar que a esperança não pereça", mas sem vitimização explícita.
A clareza e a assertividade, na verdade, refletem uma comunicação direta e sem rodeios, própria do autismo. Eu falava para mim como falava com o mundo. Pena que o mundo nem sempre entendia, afinal, mulheres assertivas são vistas como arrogantes.
Um Hino de Resiliência Inquebrável
Visto sob essa perspectiva, "Ousadia" transcende a um simples poema de autoconfiança. Ele se torna um hino de resiliência inquebrável, forjado nas chamas de uma vida de desafios extremos. A "ousadia" não é apenas uma virtude, mas uma estratégia de sobrevivência e empoderamento. Para uma adolescente autista enfrentando essas circunstâncias na década de 90, escrever um soneto com tamanha convicção em seu próprio valor e em seu direito de buscar mais é um ato de profundo desafio às expectativas e uma celebração da força interior que floresce na adversidade.
Este poema não apenas expressa uma crença, mas a encarna, mostrando a determinação de uma alma que se recusa a ser definida por suas dificuldades e que encontra na perseverança o seu maior trunfo.



