Ao reler, à luz do meu diagnóstico de TEA, tudo o que escrevi em mais de trinta anos, é nítida a luta para processar a intensidade e o teor dos sentimentos. Mas para além dessa óbvia elaboração, que deve ser comum a todo poeta, está o poema como um ritual de libertação. E Ocupação é a expressão perfeita dessa constatação porque ele finda um ritual executado por meses, e planejado por cerca de 9 anos.
Perséfone EM Hades é a confrontação de uma tendência de existir em um molde. Eu definitivamente não me conformo a moldes, e este em particular, especificamente para meu caso, foi moldado em padrões obsoletos e ideias falidas. Mas uma parte minha desejava desesperadamente me encaixar para poder ocupar um lugar no mundo. Falhei miseravelmente!
A submissão a ideias pré-fabricadas requer compreender que este é um mundo de aparências. Muito se esconde nos cantos escuros da aparência de normalidade, e uma pessoa habituada ao mascaramento de suas peculiaridades, ironicamente – ou intuitivamente - pode odiar esse viver de aparências. Se o sentir é abissal para o autista, o não sentir é desestruturador. Especialmente quando a aparência de normalidade é sentir. Então, quando afirmo no primeiro poema de Perséfone em Hades “Desliza ao meu redor como sobre qualquer superfície. Não afunda nas dobras, nem percebe as sombras que aprofunda”, essa frouxidão no amor, que ofende, como já aventara Bocage, desvela um apinhado de aparências que sustenta um simulacro de vida. E a frouxidão no amor é uma ofensa que abre fissuras nas estruturas mais impermeáveis que uma convenção social pode erigir. O não sentir aciona a razão, que suspende o sentir por um tempo, e reordena o mundo em caos como uma sequência de palavras em confortante aliteração. E ao fazer isso evito o desmoronamento do eu, que assim como o mundo de aparências, erigi de um empilhamento de máscaras. Talvez a completa abjeção a esse mundo “para inglês ver” venha justamente de não poder saber o que é verdadeiro. Assim como no meu arsenal de máscaras, há uma para cada ocasião e, sobrepostas, fica difícil saber se há algo real por baixo. Talvez haja só o oco. O vazio absoluto que nada representa! Talvez nunca seja possível remover todas. Talvez a última- ou primeira - esteja tão aderida ao que quer que haja por baixo nem seja mais possível remover sem grandes prejuízos psíquicos. E tudo o que eu busco na aliteração, na rima, no encadeamento sonoramente aceitável dos gritos que me mantém acordada nessa caixa craniana, é me manter psiquicamente saudável. Por isso, ao reler Ocupação, e ciente de que Perséfone em Hades não só nasceu para ser um livro ilustrado, como nasceu para ter continuação, percebo que ao fim de um longo ritual de exorcismo das ideações de amor, concluí que precisava de uma máscara. Uma máscara de poeta, talvez, já que justamente este livro me levou a descobrir que “meu verso é passagem”. Se preciso ir a algum lugar e passar por isto ou aquilo, nada como uma máscara de poeta, não é mesmo?
E assim, de uma postagem no Substack nasce o caminho para a continuação. Despir as máscaras será mais difícil do que encarar o passado e escrever TEA menina? A verdade é que sem a muleta das convenções sociais que norteiam a vida ela fica bem vazia. Este vazio debaixo das máscaras já foi perscrutado por Scarlet Moon, minha personagem. E Luna, sua contraparte frágil vai encarar esse vazio, como a criança que nunca fui. Perséfone EM Hades é sobre a mulher que eu preciso ser. Há muito vazio entre esses extremos. E só sei transpor abismos conjurando palavras.





