O que fazer com a Estrutura Nua?
Desvelando as estruturas sociais e oferecendo uma resposta à crise da narração de Byung-Chul Han.
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O que fazer com a Estrutura Nua: Tricksters, Neurodivergentes e a Crise da Narração
Este ensaio desenvolve a teoria de que a mulher autista, especificamente no nível um de suporte, personifica o arquétipo da trickster feminina — uma figura de astúcia e subversão historicamente relegada à oralidade e suprimida pelas narrativas canônicas encapsuladas nos mitos. Através de sua capacidade inata de perceber as "estruturas nuas" da realidade e de tecer sentido a partir do fragmentário, ela emerge não apenas como um contraponto, mas como uma resposta biológica e necessária à "crise da narração" diagnosticada pelo filósofo Byung-Chul Han. A análise a seguir costura mitologia, teoria literária, filosofia e a experiência neurodivergente para demonstrar como essa percepção diferenciada se torna uma potente ferramenta de resistência e recriação em um mundo que perdeu sua capacidade de narrar e, consequentemente, de sustentar o próprio sujeito.
O texto anterior, A Estrutura Nua: Autistas, Tricksters e a Percepção Além dos Véus Sociais, prometeu uma resposta ainda não plenamente formulada e tenta demonstrar, por meio de exemplos práticos, como a percepção autista opera, o que ela percebe — as estruturas nuas — e o que fazer com isso é a questão que fica. A intenção era aprofundar a relação do autista com a figura arquetípica do trickster, já que ambos desvelam a nudez estrutural. E, para mim, de alguma forma, essa percepção diferenciada do mundo teria algo a oferecer à atual conjuntura, mesmo que fosse apenas a crítica. E, sim, eu enxerguei isso na percepção autista, que parece ser meu tema de estudo desde a mais tenra idade. Desde antes de ter um diagnostico me alocando no espectro do autismo meus processos cognitivos eram objeto de observação continua e contundente.
O Arquétipo do Trickster e a Astúcia Feminina Silenciada
Quem me trouxe a terminologia e a compreensão a respeito do trickster e sua função social, cultural e psíquica — o desnudamento das estruturas — foi Lewis Hyde, durante meu mestrado. E mais tarde, à medida que escrevia minha própria história e escarafunchava o passado sob a perspectiva neurodivergente, a analogia entre o autista nível um de suporte e o trickster foi um desdobramento natural. E mais: com um recorte de gênero, uma vocação para a autocriação e um pezinho no reino do "era uma vez". Ou seja, minha teoria é de que mulheres autistas no nível um de suporte, com sua capacidade de camuflagem, sua imaginação — este, um traço muito enfatizado no autismo feminino — e sua necessidade de encontrar sentido nas percepções fragmentadas e desnudas do mundo, têm uma relação profunda com a figura do trickster, um arquétipo investido de astúcia e tolice na mesma proporção; propagador do caos e, por conseguinte, da mudança; patrono da linguagem, da comunicação e do hermetismo; protetor dos ladrões e trapaceiros.
Na mitologia grega, que costura as narrativas de nossa sociedade contemporânea, esse arquétipo é masculino e, apesar de sua androginia, acredita-se que represente uma energia predominantemente masculina, intrinsecamente ligada ao patriarcado. Hyde detecta em Hermes e Krishna — da mitologia Hindu — um padrão de desligamento da figura materna por parte desses tricksters e a criação não procriativa como inerente à sua natureza, o que justifica suas caracteristicas masculinas e pouco ou nenhum rastro de tricksters femininas. Apenas Baubo é encontrada na mitologia grega como uma alusão distanciada de uma trickster, e sua descrição, por Hyde e pelo próprio mito de Deméter, onde ela nos é apresentada, fica circunscrita ao ramo da palhaçaria e mais próxima do ridículo do que do astuto. Embora o palhaço seja, em nossa sociedade contemporânea, uma das manifestações mais astutas do trickster, essa análise não é estendida para este campo, e Baubo é reduzida ao escracho.
Contudo, o próprio Hyde traz Loki, o trickster da mitologia nórdica, como uma figura mitológica que extrapola as fronteiras do gênero, já que ele vive como mulher por um tempo e, por meio do transmorfismo animal, procria na forma de égua, dando à luz Sleipnir, o cavalo de oito patas de Odin. Retrocedendo mais no tempo, Hyde nos apresenta a mitologia Winnebago, povo indígena da América do Norte, na qual o trickster é Wakdjunkaga (que significa "o astuto"), cuja natureza primordial, impulsionada pelo apetite e pela tolice, através de suas ações caóticas, acaba por moldar o mundo e trazer valores à existência. Wakdjunkaga se disfarça de mulher, casa com o filho de um chefe e dá à luz três filhos. Este episódio, juntamente com os mitos sobre Loki, leva alguns analistas, como Victor Turner, a sugerir que os tricksters têm um "estatuto sexual incerto" ou andrógino. A fluidez de gênero, contudo, não parece contemplar de fato o feminino, mas apenas enfatizar a operação da energia tricksteriana nos limiares e sua aptidão inata para a transgressão. Via de regra, nas mitologias, ele retorna sempre à forma masculina e exerce, portanto, a autoridade conferida à masculinidade na atual conjuntura.
Esse breve retrocesso na mitologia do trickster, todavia, tem uma função maior do que estabelecer um cânone mitológico. Chegar a uma cultura que era tradicionalmente oral- Winnebago- é essencial, pois a trickster feminina permaneceu na oralidade. A mitologia grega, ao ditar os rumos da cultura ocidental, consolidou a ascensão do patriarcado por meio de mitos regiamente documentados, os quais varreram a astúcia feminina da história, relacionando-a à perfídia e à queda do paraíso. A grega Pandora e a Eva, na mitologia Judaico-Cristã, eliminaram as mulheres da vida pública, pondo sua astúcia, sua curiosidade e sua voz como veículos para a perdição. Mas, na vida privada das mulheres, essas características condenadas continuaram existindo e sendo propagadas oralmente. E entre os subcidadãos — os oprimidos, os silenciados no foro da civilização —, a contação de histórias subsistiu, criando e lapidando narrativas nas quais a astúcia feminina impera absoluta. O protagonista masculino dos contos, por outro lado, geralmente é um tolo. Isso porque estamos no outro lado da criação, onde o caos precede a ordem, e a ruptura e a transformação são partes naturais da existência. E o masculino é justamente a força contida da ordenação nesse lugar fora do tempo e do espaço, cujos portais adentramos com as palavras mágicas "era uma vez". Por isso, onde o feminino precisa desenvolver sua astucia o masculino precisa dar brecha para o tolo aflorar. Como na iconografia do Tarot, o louco— uma das encarnações do trickster— é o que inicia a jornada revestido de tolice. E o tolo, assim como o palhaço são representações do trickster em sua manifestação masculina, mas completamente imiscuidas à cultura, esgarçando as divisas entre o popular e o erudito, ao navegar entre o circo e a corte , invadindo tanto o imaginário popular quanto a sofisticação das engrenagens dramaturgicas shakespereanas e integrando assim o canone da literatura enquanto ainda integra as narrativas populares vinculadas à oralidade e ao puro entretenimento.
A Cesta da Ficção: O Refúgio da Narrativa Matrilinear
O conto de fadas, termo usado por Zipes para englobar toda a natureza de contos populares, foi, no século XIX, relacionado ao gênero feminino, em especial à serviçal idosa e robusta cuja função era maternar os filhos da elite. A ideia da contação de histórias ser um ofício das avós é relativamente nova e diretamente relacionada à crescente alfabetização e popularização do livro e evidencia ainda a estratificação social em classes. E ela evoca uma aura de domesticidade e subserviência que, outrora, estava vinculada a um senso de comunidade. Imagine a fogueira e a tribo ao redor — seja de indígenas ou escoteiros — e não necessariamente o narrador precisa ser uma mulher nos primórdios da civilização, mas qualquer um que tenha uma história para contar.
É Ursula K. Le Guin que, de certo modo, coloca a mulher como a narradora nessa fogueira, no ensaio "A teoria da bolsa de ficção". Le Guin desafia a narrativa tradicional da evolução e da cultura humana, que, ela argumenta, foi dominada pela figura do caçador e da arma. Em vez disso, ela propõe a "Teoria da Bolsa da Ficção" (Carrier Bag Theory), que posiciona o recipiente — cesta, bolsa ou pote — como a primeira e mais importante ferramenta cultural da humanidade. Ela argumenta que a maior parte da alimentação humana (cerca de 65% a 80%) provinha da coleta de vegetais, sementes, grãos e pequenos animais. Essa atividade, que exigia apenas cerca de quinze horas de trabalho por semana, deixava muito tempo livre para outras ocupações. A caça a grandes animais, segundo a autora, era uma atividade menos essencial para a subsistência, mas que gerava histórias mais emocionantes e dramáticas, o que propiciou a ascensão da narrativa heróica, que glorifica a violência, a dominação e a morte. Essa história, centrada em "coisas longas e rígidas" como lanças e espadas, marginalizou outras experiências humanas, especialmente as femininas, ligadas à coleta, ao cuidado e à comunidade. Essa "Teoria da bolsa" oferece uma visão da cultura humana não baseada na arma, que "extrai a energia para fora", mas na ferramenta, que "traz a energia para casa". Desse modo, Le Guin, ao resgatar o valor da oralidade e das narrativas domésticas e frugais e do senso de comunidade que elas evocam, nos remete à teoria de Byung-Chul Han quanto à crise da narrativa.
E devo ressaltar que, na verdade, foi Byung-Chul Han quem resgatou, em minha memória, esse texto de Le Guin, que serve de arremate à proposição de que o conto de fadas — aqui usado como termo guarda-chuva para contos em geral —, nascido e criado no bojo dessa comunidade narrativa essencialmente oral, guarda as sementes da trickster: a mulher astuta, capaz de subverter a ordem e reescrever o próprio destino. Mas, antes de proceder à relação entre essas narrativas e a crise da narrativa apontada por Han, preciso esclarecer que meu raciocínio se embasa na compreensão da energia criativa que é dual, feita de luz e sombra, ordem e caos. Ela é cíclica, com uma força dando lugar à outra quando há desequilíbrio, instaurando, assim, o caos absoluto, para que as forças possam encontrar um ponto de equilíbrio. Este antigo saber sobre o equilíbrio dinâmico entre ordem e caos, representado pelo TAO na filosofia chinesa, encontra um eco inesperado e brutal em uma das mais influentes mitologias da cultura pop contemporânea: a saga Alien. Bem, talvez o filme ilustre mais o meu raciocínio do que a filosofia chinesa, mas estenderei a analogia para maior clareza.
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No filme Alien, temos uma luta de duas forças: o senso de ordenação e contenção criado pelo homem representado pela "mãe artificial" que é a nave Nostromo, e temos o Alien, uma força destrutiva que remete à iconografia da Deusa-Mãe em diversas culturas matrilineares anteriores à ascensão do patriarcado. Como tento defender em minha dissertação de mestrado, a mitologia grega pode ser lida como uma recontação da história humana da perspectiva do vencedor. No mundo pré-histórico dual apresentado por Le Guin, de certo modo, a narrativa de vitórias e conquistas, que celebra a morte e a competição, suplantou a narrativa contemplativa, que permitia um vibrante mundo interno, a convivência equilibrada com a natureza e o desenvolvimento pessoal. Essa primeira vitória da narrativa heróica, ainda simbolicamente representada no filme Alien, nos deixa no vácuo, à deriva em um sono criogênico como Ripley, e nos lança na lógica do consumo e na sociedade do cansaço, como propõe Han. E tudo isso cria a crise da narrativa e, como um ouroboros, persevera por causa dela.
A Crise da Narração: A Vida Desnuda no Mundo Pós-Narrativo
A obra A Crise da Narração, do filósofo Byung-Chul Han, apresenta uma análise crítica sobre o paradoxo da sociedade contemporânea: embora o termo "narrativa" seja usado de forma inflacionária por meio das redes sociais e da publicidade, vivemos em uma profunda crise narrativa, marcada por um vazio de sentido e consequente desorientação. Han argumenta que o storytelling moderno não representa um retorno da narração, mas sim sua apropriação pelo capitalismo. Um fenômeno que ele define como storyselling. Para o autor, o uso excessivo do conceito de narrativa é um sintoma de sua disfunção. As narrações realmente autênticas, como os rituais e as religiões, ancoravam o ser humano no mundo, davam sentido, apoio e orientação à vida. Em contraste, as "narrativas" atuais são percebidas como contingentes, substituíveis, e perderam sua força vinculante. Vivemos em uma "época pós-narrativa", onde a comunicação é dominada pela informação, uma força oposta à narração. Enquanto a narração reduz a contingência e cria sentido, a informação a intensifica, resultando em uma sociedade bem-informada, porém desorientada. A comunidade criada pelo storytelling capitalista apenas forma uma comunidade de consumidores isolados, substituindo a fogueira comunitária pela tela digital individualista.
Han aprofunda a oposição entre narração e informação, apoiando-se nas reflexões de Walter Benjamin, e postula que a narração se caracteriza pela distância, pela amplitude temporal e por uma "aura" que surge da interação entre o próximo e o longínquo. Já a informação tem valor apenas no instante em que é nova e se esgota rapidamente. Ela destrói a distância, abole o mistério com explicações e sufoca o espírito narrativo. A digitalização radicalizou esse processo, e a dinâmica de postar, curtir e compartilhar, em uma suposta comunicação constante, desvela-se como uma forma de dominação sutil e eficiente, que se disfarça de liberdade.
O apelo da Jornada do Herói permeia toda essa dinâmica, sendo parte fundamental dos manuais de marketing moderno. A CTA, ou call to action, presente nos dispositivos de mídia, é a segunda etapa da Jornada do Herói, na qual, a grosso modo, somos chamados a ser heróis de nós mesmos, galgando degraus em uma sociedade pautada pelo consumo. Para Han, a narração tradicional era o veículo da experiência e da sabedoria, oferecendo "conselhos" tecidos na substância da vida. E essa característica essencial se perde quando a narração passa a ser apenas um ferramental usado para confundir, pois, nessa esteira virtual, a cada dia é menos possível diferenciar anúncio de narração, ou mesmo anúncio de informação. A modernidade nos traz, assim, uma pobreza de experiência e gera um "novo bárbaro" em uma terra sem lei e sem visão de futuro. O tsunami de informações fragmenta o tempo, reduzindo-o a uma sucessão de presentes e transformando a vida em mera sobrevivência.
A Vida Narrada e A Vida Desnuda
Han explora a necessidade de uma estrutura narrativa para a coesão da vida, dialogando com Proust, Heidegger e Sartre. A tentativa de Proust de "reencontrar o tempo perdido" e a "extensão de toda a existência" de Heidegger são respostas à fragmentação temporal da modernidade. A era digital intensifica essa fragmentação com "realidades momentâneas" (snaps, stories) que não constituem narrativas autênticas. A memória humana, que é seletiva e narrativa, é substituída pelo armazenamento digital, que é aditivo.
Usando o romance A Náusea, de Sartre, Han descreve a vida sem narração como pura facticidade, contingência e ausência de sentido. Esta é a vida desnuda que, presumo, todo neurodivergente vê e que todo trickster existe para nos fazer ver. Roquentin, o protagonista da obra, descobre que "para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo". A crise moderna era "viver ou narrar"; a crise atual é "viver ou postar". O barulho da comunicação digital encobre o vazio de uma vida sem narrativa.
A crise da narração é, para Han, um processo de desencantamento. Um mundo puramente factual e explicável não pode ser narrado. Han ilustra essa ideia com um conto sobre um menino que só consegue listar fatos e precisa ser lançado em um mundo mágico e inexplicável para aprender a narrar. O desencantamento é para Han uma "desauratização", a perda do brilho misterioso que eleva o mundo para além da facticidade. As informações, por serem transparentes e sem distância, destroem a aura. Han conclui com uma história hassídica que mostra a progressiva perda dos rituais, restando, no final, apenas a narração da história, que ainda mantinha o poder original. Hoje, adverte ele, estamos perdendo até mesmo essa última capacidade.
A Percepção Autista como Antídoto: Tecendo Sentido no Caos da Informação
Esse desencantamento é inerente à percepção autista. O que Han chama de "aura", eu chamei, antes de conhecer sua obra, de "vestes". Ou "vernizes". Ou "máscaras". Enquanto mascaramos, nós, neurodivergentes, desenvolvemos esta indesejada habilidade de perceber as máscaras alheias. E a naturalidade com que elas são usadas comumente nos horroriza. E isso desencanta. E o desencanto nos afasta do mundo.
Retomando a metáfora do quadro que usei em TEA Menina, minha teoria é de que o cérebro neurodivergente similar ao meu processa, de imediato, algumas informações do quadro, vitais para o momento presente. Mas permanece conectado à imagem integral e continua, em segundo plano, fazendo correlações entre as informações visualizadas até apreender o quadro completo. Talvez não seja o quadro exatamente como ele é. No meu caso, certamente não seria, já que não possuo uma memória eidética. Mas, com certeza, a recomposição do quadro apresenta uma narrativa. A narrativa é o que dá sentido e coerência à informação. É sabido que cérebros neurodivergentes operam incessantemente. Não à toa, os distúrbios do sono (insônia) e os sonhos lúcidos são relacionados à dupla excepcionalidade, como Autismo e Superdotação, e demais combinações no escopo da neurodiversidade. O funcionamento cerebral de um neurodivergente é ininterrupto e, diferente dos computadores, ele não entra no modo de repouso, nem quando o operador consciente dorme. Isso significa que as informações captadas e não processadas continuarão na fila de processamento e serão, em algum momento, alocadas no ponto ao qual pertencem do quadro. A vida, para o autista, é um grande quebra-cabeças, e a facilidade de detectar padrões é uma habilidade adquirida e constantemente lapidada, mesmo sem conhecimento consciente. E isto afirmo, categoricamente, a partir de minha própria experiência.
Daí que, em um cenário de informação massiva e fragmentada, a mente autista busca coerência, coesão e sentido, cruzando dados de forma permanente. E isso é facilmente apreensível quando vislumbramos o autista do sexo masculino com alto QI. Estes são os autistas desejados pelo mercado de trabalho, em especial pela tecnologia da informação e ciência de dados, que instrumentaliza suas habilidades para a instrumentalização da narrativa pela lógica do consumo. Contudo, quando se trata do autismo feminino, essa mesma capacidade e inteligência são perpassadas por uma imaginação ampliada e uma empatia exacerbada. Tudo vira a sensibilidade que descredita as "débeis mentes femininas" para o senso comum. Mas são essas mulheres autistas que tomam das mãos de Ursula K. Le Guin a "bolsa da ficção" e buscam coletar dados sensíveis que reconstituam suas histórias e sua voz. Isso pode ser medido no grande número de mulheres de diagnóstico tardio de Autismo que contam suas histórias pelas redes sociais. Elas aderem à lógica do mercado de consumo para tentar visibilizar suas narrativas.
O Levante da Natureza: Tricksters, Neurodivergentes e o Futuro do Sujeito
O desgosto da sociedade com o crescente número de diagnósticos de adultos, especialmente mulheres antes alocadas no escopo da loucura, é outro sintoma que nos leva ao filme Alien e à proposição de duas forças que, juntas e coesas, mantêm o universo fluindo, como um átomo estabilizado por prótons e nêutrons. Mas, quando em desequilíbrio, temos o desequilíbrio, a fissão e a aniquilação. Em minha dissertação de mestrado, tentei apontar o evidente desequilíbrio, visto que vivemos sob a mão pesada da cultura patriarcal, hoje travestida de capitalismo selvagem. Psiquicamente, falta-nos a força do feminino, refugado como a força voraz quando íntegra e corrosiva quando ferida, e por isso perfeitamente encaixada no corpo reptiliano do Alien. E nosso psiquismo é fruto das histórias que nos foram contadas por milênios. A transmutação desse psiquismo só pode, portanto, ser transformada por novas histórias.
E o que a mitologia contemporânea criada no entorno do Alien nos conta é que a natureza não pode ser controlada. A era da racionalidade, consolidada pelo Iluminismo, na verdade, foi inaugurada pela ascensão patriarcal. E o feminino foi confinado no monstruoso. E o "feminino" não se trata de uma definição de gênero binária e simplista. O feminino aqui toma o lugar do caos inerente a toda criação. Quando uma sociedade se blinda do confronto traumático e evita a mudança necessária, congelando-se numa zona de segurança, o caos precisa operar, gerando as rupturas necessárias. O tecido da realidade precisa ser rasgado para, então, ser tecido mais forte e orgânico, perdendo a modelagem compulsória de um corpo que o distorce e esgarça, e dando lugar a um novo corpo social. A natureza é cíclica e pede renovação e troca, desde a menor partícula que compõe a matéria. Da mesma forma, o presente engessamento do tecido da realidade, representado pela crise da narrativa demonstrada por Han, exige mais força do que a resistência da natureza e sua natureza tricksteriana.
E, justamente nesse momento histórico, o crescimento de neurodivergentes diagnosticados — em especial o número de mulheres tendo sua neurodivergência reconhecida — parece ser um oportuno levante da natureza. Se a mulher neurodivergente, por seus traços, se alinha com o perfil da trickster feminina detectada nos contos de fadas — astúcia, empatia e busca do bem comum — e já discretamente imiscuída na cultura popular, isso não pode ser um acaso, e sim um convite à arte da resistência, onde a necessidade da continuidade e da coerência narrativa, representa uma forma de resistência natural e biológica para evitar a derrocada do sujeito. Porque sim, o que Han aponta, e resume Davi Costa, é que a crise da narração é também a crise do sujeito. Por sujeito podemos entender uma individualidade dotada de consciência critica.
Han defende que a própria teoria é uma forma de narração. A tabulação de dados não substitui a capacidade reflexiva de grandes teorias. De Platão e Kant a Freud e Nietzsche, as narrativas ousadas reordenam o mundo o abrem novas percepções. Do mesmo modo, esta minha teoria — que não pretende a grandeza desses filósofos, mas professa a percepção de um cérebro neurodivergente em busca de sentido e o encontro de um poder terapêutico intrínseco à narração — forma-se como uma narrativa que condensa recortes com grandes brechas de tempo e finalidade entre si, mas que se alinham em perfeito sentido. E, ora vejam, um indivíduo que se sente desconectado do mundo desde sua neurologia é, desde a redação desta teoria, portador de uma necessidade intrínseca de narrar, conjurando, assim, os valores essenciais para a coesão social, transportando esses valores e convocando à ação comum. Dessa perspectiva o indíviduo neurodivergente que prefere estar só e se expressa sem necessariamente se comunicar pode ser o guardião biologicamente moldado da narração, que promulga o senso de comunidade frente a um neoliberalismo que dissolve esta comunidade em favor de narrativas privadas de auto-otimização e desempenho, que por usa vez apenas isolam. Para Han, a consequência é a "comunicação sem comunidade". Atrevo-me a fazer mais um paralelo com a comunicação autista e reformular esta frase: a consequência da apropriação da narração pelo neoliberalismo é a "expressão sem comunicação".
E sobre isso falaremos mais tarde. A expressão sem comunicação é a questão que fica para depois desta vez
Foto de alguns anos atrás.
Referências
ALIEN. Dir. Ridley Scott. EUA: Brandywine Productions, 1979 (117 min.)
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
LE GUIN, Ursula K. A teoria da bolsa de ficção. São Paulo: Roteiro, 2020.
TATAR, Maria. A Heroína De 1001 Faces. São Paulo: Cultrix, 2022
ZIPES, Jack. Breaking The Magic Spell. Kentucky: The University Press of Kentucky, 1991
ZIPES, Jack. Fairy Tales And the Art of Subversion: The Classical Genre for Children and The Process of Civilization. New York: Routledge, 2006.
ZIPES, Jack. Spells of Enchantment: The Wondrous Fairy Tales of Western Culture. New York: Penguin Group, 1991
ZIPES, Jack. The Enchanted Screen: the unknown history of fairy-tale films. New York: Routledge, 2011.
ZIPES, Jack. The Irresistible Fairy Tale: The cultural and social History of a Fairy. New Jersey: Princeton University Press. 2012.





