O Poema "Solidão": Uma Janela para a Alma Autista
Revisitando versos esquecidos sob a lente da neurodivergência.
Aquarela realizada para capa o livro A Sul do Ibiarapuera, de Ruth Cassab Brólio e Ruy Vilani
Solidão
Essa solidão é porque não tenho o que partilhar.
Além desse imenso amor, não tenho o que dividir
com o mundo. Mundo que não sabe ouvir,
mundo cansado de ouvir o que cansei de contar.
Prefiro meu assombrado e escuro esconderijo
a falar de amor a quem não sabe compreender
sentimento tão grande que nem sei descrever.
Nada tenho a oferecer ao mundo como o vejo.
Esse mundo abarrotado de gente arrogante
também não tem nada que possa me dar.
Essa gente amarga, seca, só sabe mostrar
pelos modos mais rudes um mundo frustrante.
Não quero nada desse mundo em meu coração.
Neste meu peito ainda guardo um paraíso,
um lugar iluminado, cheio de graça e de riso,
tanta beleza que não cabe em minha visão.
Quero sempre de pé e protegido o meu castelo,
sempre acariciado por fragrância suave.
Que, além de mim, só a brisa tenha a chave
desse monumento ao que tenho de belo.
Não permito ao mundo tirar-me a ingenuidade.
Por nada abdico da minha louca inocência.
Do meu coração não suportaria a ausência.
Basta que da minha alma eu sinta só metade.
"Conhece-te a ti mesmo”
Ainda me surpreende como a consciência da neurodivergência aprofunda os significados de poemas que eu considerava "excreções" dispensáveis, desprovidas de real valor literário. Hoje, conhecendo a mim mesma, posso atestar o valor desses escritos. Eles seriam esquecidos se não fosse a clareza de que, sim, há um valor como registro nesses versos. São um registro da solidão e da dor da mulher autista – ou melhor, da menina autista – sem diagnóstico e sem acolhimento que não o próprio refúgio interior.
A linha "Quero sempre de pé e protegido o meu castelo" é mais do que um verso; é uma exortação à resistência e um ingrediente alquímico necessário ao desenvolvimento da resiliência. Na vida adulta, quando meu corpo deu sinais de colapso e minha saúde mental foi posta em xeque, uma terapeuta me diria que meu limiar para frustração era baixíssimo. E, de fato, era.
A Caligrafia como Reflexo e Luta Silenciosa
Quando penso nisso, recordo-me de minha caligrafia e da implacável perseguição por um ritmo visual belo na infância. Minha letra ainda responde ao meu estado de ânimo. Nunca teve as formas arredondadas e o tamanho uniforme que eu desejava. Na escola, pedia que as meninas de letra bonita escrevessem poemas de que gostava em meu caderno. "Soneto de Fidelidade", de Vinicius de Moraes, foi um deles. Pedir esse favor significava que a frustração havia vencido, e eu nunca pude gostar da minha letra naquela época. Mas nunca desisti de melhorá-la. Já adulta, escolhi um traço elegante, imitando a caligrafia de alguns escritores a cujas missivas tive ligeiros acessos. Quando estou com pressa ou atravessada por emoções diversas ao mesmo tempo, a caligrafia torna-se errática de novo.
Naquela época, a luta caligráfica e o silêncio andavam juntos. Pedir algo a uma colega cujo nome nem memorizei – mas cuja lembrança da letra evoca ternura – era tão extraordinário em minha vida quanto pedir revistas em quadrinhos emprestadas aos meninos. Eram feitos isolados, frutos de arroubos de coragem sustentados por interesses muito específicos. No mais, eu era silenciosa e invisível. Natural ser "a irmã da Zilda" quando nem eu mesma sabia meu nome. (Eu entendo o Irmão do Jorel).
Lembro-me de uma ocasião em que a professora perguntou se alguém havia trazido alguma coisa. Não lembro o quê, só que ergui o braço e respondi: "Eu trusse". A turma, em uníssono, reagiu: "Oh!". Assustei-me e encolhi-me na carteira. Percebendo isso, a professora mansamente disse: "Está tudo bem. Eles só estranharam porque você nunca fala. E o correto é dizer 'trouxe'." Nunca mais esqueci a conjugação correta do verbo "trazer". Mas não percebi, dada a pressão de viver o momento, que evoluía vagarosamente de "excessivamente tímida" para "socialmente estranha". Sustos como o do dia em que "trouxe" algo para a sala de aula precisavam ser processados em vez do contexto, para que as rupturas internas fossem menos visíveis e, quem sabe, menos sentidas.
O Desafio da Conexão e a Frustração na Comunicação
A solidão não é apenas a ausência de companhia, mas a impossibilidade de partilhar a riqueza de um mundo interior que parece incompreensível aos outros. O "imenso amor" é uma intensidade de sentimento que não encontra canais para ser expressa ou recebida. Eu não dominava a linguagem exterior de expressão de sentimentos e nunca sabia o tempo certo de fazê-lo. Durante muito tempo, só tive tempo para compreender a frustração em tentativas repetidas e infrutíferas de me comunicar, talvez usando formas de expressão não verbais ou lógicas que o "mundo" neurotípico não compreende ou não tem paciência para decifrar. O "assombrado e escuro esconderijo" tornou-se, então, um refúgio necessário para evitar a exaustão social e a constante incompreensão. Na verdade, existem lugares em minha mente nos quais posso me esconder sem ver o tempo passar. Fica em uma encruzilhada, entre a exaustão e a ansiedade, e a poucas quadras do colapso total.
O Mundo Exterior: Sobrecarga Sensorial e Julgamento
O mundo percebido como avassalador e hostil ainda é meu nêmesis. Agora uso as palavras para criar essa transformação alquímica que me fará sentir segura e no tempo certo. Não posso estar atrasada para minha própria vida, posso?
Fato é que as palavras me ampararam no processamento da falta de empatia, da impaciência e do julgamento de pessoas que não entenderam minhas diferenças. O "mundo frustrante" é a expressão poética de uma sobrecarga sensorial e um reflexo da dificuldade em navegar regras sociais não ditas. É a percepção de que as interações são unilaterais e esgotantes.
Foto de meu ateliê, poucos anos atrás.
O Paraíso Interior: Um Santuário Essencial
Escrever foi um mecanismo de defesa vital. O "paraíso" e o "castelo" são metáforas para um mundo interior vibrante e complexo, muitas vezes mais rico e ordenado do que o caos externo. Esse espaço é sagrado e inviolável, um santuário contra as demandas e a incompreensão do mundo exterior. A ideia de que "só a brisa tenha a chave" declara a preferência por interações sutis e não invasivas que poucos conseguem oferecer.
A Preservação da "Inocência" e da Essência
Fala-se muito da ingenuidade do autista. Mas hoje, depois de minha pesquisa de mestrado, faço uma leitura diferente dessa ingenuidade, que para mim evidencia divergências de percepção. Especificamente no nível 1 de suporte e nos casos de múltipla excepcionalidade (TEA + TDAH; TEA + AH/SD), as formas de perceber o mundo e reagir a ele remetem à ideia de ingenuidade quando, na verdade, acreditar pode ser uma escolha deliberada para quem enxerga múltiplos desfechos e infinitos desdobramentos desses desfechos. É outra encruzilhada. Essa capacidade de análise sobrecarrega a imaginação, suscita a ruminação venenosa, e o mecanismo de defesa é racionalizar e simplificar.
A "ingenuidade" e a "louca inocência" hoje percebo como a capacidade de ver o mundo de uma forma única, livre das convenções sociais e das "máscaras" que muitos usam. Para uma pessoa autista, manter essa "inocência" é mais do que preservar sua autenticidade e sua forma particular de ser e sentir; é poder mascarar o tumulto interno ou até mesmo ignorá-lo por um tempo. A ingenuidade, dessa perspectiva, é a saída mais fácil. Não a mais benéfica, mas a mais rápida e executável em tempo real.
O verso "Basta que da minha alma eu sinta só metade" tinha um sentido muito particular que para mim se perdeu. Dou a ele uma nova interpretação, mais alinhada com minha evolução e o desenvolvimento do amor-próprio que não depende de "metades da laranja" para saber-se inteiro. Agora esse verso condensa o sentimento de não sentir-se inteiro no mundo e da síndrome do impostor que nos cerceia, talvez com mais vigor do que em um neurotípico.
Quase três décadas se passaram para que o poema "Solidão" de uma adolescente autista de 25 anos atrás pudesse ser visto não como um lamento sobre o isolamento, mas como um testemunho da resiliência e da necessidade de proteger a própria identidade em um mundo que, àquela época, oferecia pouca compreensão ou adaptação às diferenças neurodivergentes. É um grito de que, mesmo que o exterior seja hostil, o mundo interior é um tesouro que vale a pena ser defendido a todo custo. E que permanece em pé e protegido, graças à poesia




