O louco, o mago, o imperador e o papa
Crônica introspectiva que explora a jornada pessoal e criativa através do tarô e da figura do 'louco'. Uma reflexão sobre autoconhecimento, fé e o poder da palavra na vida do escritor.
Imagem por IA, com uma interessante configuração de mãos.
Um dos presentes mais interessantes que já ganhei foi uma sessão de tarô terapêutico. É sessão por ser terapêutico, mas admito que estou lendo o futuro naquelas cartas até agora. Ou seriam lâminas que cortam uma brecha precisa tecidos da realidade e desvelam as probabilidades? Difícil definir, pois entre o ceticismo de minha mente há a genética de um curandeiro mestiço. Ou feiticeiro mestiço, como defini em TEA Menina. Meu avô era um cartomante, cercado de lendas. E não era o único homem da família que lia as cartas, pois segundo minha tia a prática era comum a todos os irmãos Varella. Para mim ele era um homem que evocava muito respeito e que leu meu futuro nas cartas aos onze anos. A crença comum era essa, pelo menos. E predisse que minha vida mudaria depois de três viagens. Por um tempo contei as viagens e depois de me perder em cálculos concluí que não eram quaisquer viagens. Soube exatamente quando fiz a primeira e a segunda e por isso creio que fiz a terceira ao vir para São Paulo. Não que a cidade faça milagres. Eu é que cortei liames e fiz escolhas que me trouxeram de volta para mim mesma, nesta posição no mapa. Sou o meu destino. Todos os caminhos me trouxeram para mim. É como o conto O Mascate de Swafham, que faz o sonhador ir para longe em busca do tesouro sonhado só para descobrir que estava o tempo todo debaixo da árvore em seu quintal. Meu ressentimento ao perceber que este era o enredo de o Alquimista de Paulo Coelho agora parece se amainar diante da percepção de que a vida nos leva para longe só para reiterar que nossos tesouros estão sob a grande árvore que simboliza nossa existência. Ao contrário da macieira no quintal do mascate a minha árvore não frutifica em maçãs, mas em palavras. E em uma das estradas mais tortuosas de minha jornada em busca de tesouros conheci Cameni Silveira. Certamente uma herdeira de antigos saberes e quase esquecidas sensibilidades. Isso ou a carta do louco não pulularia à sua frente, tentando estar em suas mãos o tempo todo. E só sendo assim para não virar as costas para a mulher que encarna o arquétipo do louco com mais naturalidade do que o mundo pode suportar. Não que seja ruím esse toque de loucura. A questão é sua manifestação em um corpo feminino. Mas isso é assunto para outro dia. Importa agora que o louco nada mais é do que uma das muitas faces do trickster, cerne de minha pesquisa de mestrado. Foi como conheci Cameni, e de onde ela é o único bônus, fechando assim um circulo perfeito. E o ônus? Este transmutei em aprendizado e livro. Palavras, sempre palavras!
No tarô o louco evoca tanto sua carga tricksteriana quanto sua reinvenção moderna: o flaneur. Esboça-se assim o meu infindo caminhar, observando, como os poetas e os cães famintos nas vitrines do mundo, exercitando a gastronomia do olho e a deglutição de ar e saliva. Por isso esse toque do louco em minha natureza capaz de iniciar essa alquimia não basta para sustentá-la. A projeção de realização e materialização requer ainda o mago, o imperador e o Papa. Não basta desvelar as estruturas e expô-las nuas requisitando o olhar do outro. É preciso criar a atmosfera e investir em jogos de fumaça e espelhos. Mas a despeito de apresentar apenas um truque, o mago revive a magia nos corações da plateia. O prestidigitador cujo figurino e modus operandi ainda lembram (em alguns tarôs) o louco e as caravanas itinerantes de um mascate de outrora é, contudo, o racional dono do espetáculo. E o imperador lhe empresta ainda mais autoridade e chancela sua atuação. Mas o imperador, de certo modo, opera apenas no plano material e minha grande questão era saber o quanto de espiritualidade e de ego partilhava meu intento. Por isso o Papa surgiu como arauto de uma divindade na qual temo acreditar. Não me culpem. Quando se partilha do olho gastrônomico que tudo desnuda e da prestidigitação que encena a magia, é difícil crer. Mas de algum modo eu precisava acreditar que sou capaz de ir adiante, e assim como muitos pequenos milagres, que Jung chamaria de sincronicidade, e um ser de fé chamaria de providencia divina, a sessão de tarô cruzou meu caminho, como que para abri-lo. Não em minhas incursões costumeiras pelos sites de leitura grátis, mas um olhar de fora, uma intuição estrangeira ao meu universo de contradições. E ela, Cameni, reafirma que sim, esta é a hora. Devo agir, devo escrever, não mais em páginas secretas, mas nos corações que precisam ressuscitar em si a magia. Como um prestidigitador itinerante devo levar a palavra aos que tem sede. Talvez não sejam muitos. Talvez eu desembarque em vilarejos ressequidos, onde o sol fustiga os esquecidos de si. É uma jornada que começa com a benção do eremita. É quase um sacerdócio sem religião. Um ato de fé, sem dúvida, que prenuncia mais solitude e introspecção. E o que sonha um escritor se não solitude e imersão nos mistérios da criação?
Referências
COELHO, Paulo. O Alquimista. Edição Português. São Paulo: Paralela, 2017.
LUPTON, Hugh; SHARKEY, Niamh. Histórias de Sabedoria e Encantamento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NICHOLS, S. Jung e o Tarô. Edição Português. São Paulo: Pensamento, 1988.
OLIVEIRA, José Antonio Moraes de. A gastronomia dos olhos. Coletiva.net, [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://www.coletiva.net/jose-antonio-moraes-de-oliveira/colunas/a-gastronomia-dos-olhos,144543.jhtml?amp=1. Acesso em: 23/02/2024



