O Anjo Azul e a Analogia do "Cortezinho": Uma Autoetnografia do Capacitismo
A subversão do epíteto "anjo azul". De símbolo dócil do autismo a testemunha sombria e infernal do capacitismo. Uma autoetnografia sobre o sofrimento invisível.

O “Anjo Infernal” e a Testemunha do Trauma
Hoje tive um embate com o epíteto dos autistas. Em especial autistas nível 3 de suporte: anjo azul. Em um vislumbre, um rasgo na tecitura da realidade, o vi em azuis abissais e recortes surrealistas que me incutiram um terror mais próximo do prazer do que eu gostaria de ser capaz de sentir ou admitir sentir. E o anjo riu ao perceber o tremor na mão da médica que assinava finalmente a receita, sinalizando que me despacharia. O anjo saboreou o momento, o guardou com cuidado em minha memória como um bom anjo infernal faria. “Para depois”. A lenta deglutição da experiência seria iniciada por essa cena. E o anjo sussurrava em meu ouvido: “Você vai sofrer para digerir isso, mas ela não saiu ilesa. Veja! E você vai mastigar esse ‘still’ do drama desenrolado nesse consultório, até não sobrar nada dela, pobre criatura trêmula”.
Quando você, caro leitor, ouvir a expressão “anjo azul” para se referir a um autista, lembre-se que um mesmo Deus na antiguidade colecionava epítetos contraditórios. Um anjo azul pode ser feito de azuis espectrais. Especialmente se habitava o inferno antes de um diagnóstico tardio trazê-lo à luz.

A Necessidade de “Escarrar” a História
A médica da mão trêmula de fato teve um impacto muito grande na minha tarde, mas sou eu que tenho pena. Mesmo quando, depois de me roubar uma manhã de vida, ela me roubou as palavras e a capacidade de seguir com minha rotina prevista para o dia, a pena é minha. E antes de esquecer, assim como no calor do momento esqueci a jaqueta e mais tarde tive que voltar para pegar o celular que também ficara, ao chegar em casa gravei em áudio o ocorrido e pedi para a IA transcrever. Fatos registrados, me permiti desligar, esperando dar sequência à programação do dia depois de um descanso. Mas não pude. Tive que adiar a minha atividade por não conseguir sair da cama, por temer não ter energia para dar conta da atividade. Por temer o custo que teria para mim no dia seguinte caso eu conseguisse funcionar no automático.
Ainda não acho as palavras todas, mas acredito que não terei sossego enquanto não escarrar essa história como ela merece.
A Consulta: Quatro Meses de Espera e uma Calma Medicada
Esta foi a primeira consulta com a nova psiquiatra, depois de cerca de quatro meses sem atendimento por não haver psiquiatra na unidade de saúde. A anterior me recebeu de forma muito humana. E tive também uma grande expectativa em relação à nova profissional. Mas agora chega a ser penoso me dirigir a ela como profissional.
Eu estava calma e pela primeira vez relatei com voz pausada minha situação. Contudo, esta não era uma calma natural, mas resultado de um tanto de aprendizado e muito de medicamento. Por ter feito uma endoscopia no dia anterior e ter tido enxaqueca à noite, estava exausta e ultramedicada. Avisei, naquele tom de brincadeira usado para quebrar o gelo, que por isso ela não poderia, desta vez, anotar em meu prontuário que eu estava “verborrágica”, pois eu estava cansada demais para falar rápido ou tentar convencê-la. Como uma autoetnógrafa, concluí que me apresso por ter muito a dizer e estar ciente do pouco tempo deles. Mas esta médica estava dedicando cerca de 40 minutos a cada paciente, o que favorecia o meu cansaço e disposição mental.
“O Problema Está em Você”: A Invalidação do Burnout Autista
E relatei tudo a ela, com ênfase em minha conversa com a psicóloga que me atende no centro de suporte às mulheres vítimas de violência Eliane de Grammont, que me recomendou rever a medicação. Expliquei que por diversos motivos, dentre eles não ter suporte, não dar conta de lidar com a burocracia do sistema sozinha e mais uma série de emergências odontológicas, fiquei sem sertralina, o remédio receitado para distimia pela sua predecessora. E ao parar com a medicação percebi que ela estava me causando um embotamento emocional prejudicial. Detalhei mais do que minha mente cansada permite detalhar no momento. A seguir, expus minha teoria- delineada durante semanas de análise metódica- de um burnout autista ter sido deflagrado pelo advento da pandemia. Esclareci sobre a relação entre ansiedade e enxaqueca estabelecida por um neurologista. E como isso e o efeito da sertralina me induziram a uma pesquisa sobre dissociação e burnout autista. Perguntei se fazia sentido e se esse “diagnóstico” ajudaria a achar uma forma de resetar meu corpo e desativar esse gatilho da enxaqueca. Ela disse que não. Tive que espremer a mulher com perguntas para sair algo como: “Não, porque o burnout está relacionado ao quanto você faz. Se você faz o mesmo e você se desgasta é porque o problema está em você e não no que você faz.”. Para mim sentido não fez. Por isso repeti o contexto das enxaquecas semanais. Eram esparsas. Se tornaram de frequência semanal com o lockdown na pandemia, no qual perdi meu trabalho, minha renda, minha pouca estabilidade, minha rotina.Tive que alugar o quarto extra do apartamento e conviver com pessoas estranhas e por vezes abusivas para poder manter o mínimo de dignidade. Passei de um ritmo de trabalho de 4 dias por semana para 18 horas por dia 7 dias por semana. E ainda revivi lutos e abandonos familiares que se precipitaram do nada em minha vida mais uma vez. A enxaqueca era quando meu corpo me obrigava a parar. Ela descartou veementemente a ppossibilidade diagnóstica de uma forma que me fez questionar com meus botões sua capacidade de tratar um autista e perguntar do nada se havia lugares em São Paulo especializados em tratamento de autistas nivel 1 de suporte. Ela mencionou um mas não retive na memória.
Tentei argumentar quanto ao burnout, mas ela contra-argumentou que todo mundo vivenciou a pandemia e todo mundo viveu isso que relatei. E então eu ressaltei para ela que todo mundo vivenciou a mesma pandemia, porém a minha situação neurológica é outra, logo a minha resposta ao mesmo estresse é outra. E, na verdade - ela claramente não prestou atenção ao que eu relatei, pois nem todo mundo vivenciou a pandemia em situação de extrema vulnerabilidade. Então, nós temos aí o agravante da extrema vulnerabilidade social, que já é oriunda do autismo não diagnosticado, o qual conduz a uma marginalidade, uma informalidade na qual nem seguridade social se tem.
“Não Existe Medicação Pensada para o Autista”
Ela tratou de finalizar a consulta sem se preocupar em me dar respostas. E ao me orientar para o retorno quatro meses mais tarde, tive a chance de questionar de novo. Quatro meses é muito tempo. Ela respondeu que o clínico geral renovaria minha receita nesse meio tempo. Argumentei que ela não me conheceria renovando receita a cada quatro meses. Ela ressaltou que seu trabalho era rever a medicação, o que já havia feito. Questionei se o trabalho do psiquiatra era só “rever” medicação e ela foi afirmativa. Então perguntei qual medicação ela tinha revisto para mim. Apenas a amitriptilina com que eu já vinha funcionando, já que eu mesma não queria usar mais a sertralina. Perguntei sobre opções, e ela ressaltou que todas as opções fariam a mesma coisa que a sertralina. “Você quer medicação? Posso te dar carbamazepina. Vai até ajudar na enxaqueca, mas faz a mesma coisa que a sertralina. Quer? Eu te dou.” Pensei alto: “Então não existe medicação para autista?”, ela, irritada, respondeu: “Não, não existe medicação para autismo”. Não sei se foi o tom que parecia subestimar minha inteligência ou se já estou condicionada a rebater distorções da minha fala e, em um tom visceral o bastante para ela baixar a bola, redargui: “Eu sei que não existe medicação para autismo. Eu disse que não há medicação pensada para o autista. Se o medicamento para depressão piora a alexitimia e aumenta a dissociação, o antidepressivo não traz qualidade de vida. Mas um autista com depressão, seja a distimia ou outro tipo qualquer, é um autista em contato direto com ideações suicidas e sujeito a estatísticas de desvivimento espontâneo.
Enfim, vendo que não tiraria leite daquela pedra, pedi a renovação da receita de diazepam e de ibuprofeno, que tomo para as crises de enxaqueca. Ela negou e outra discussão tão inflamada quanto meu estado permitia se seguiu.
“Você Está Tirando o Lugar de Alguém”
Basicamente, ela não podia investigar a possibilidade de um burnout autista para dar início a uma investigação multidisciplinar e uma intervenção mais assertiva das enxaquecas, mas estava plenamente disposta a aceitar meu parecer de que o embotamento emocional da sertralina me era prejudicial e eu não queria este remédio e tampouco poderia tentar outro por serem todos iguais. Sua disposição era manter o que estava funcionado. E quando me resignei a manter o que estava funcionado, ela se negou porque diazepam não é para enxaqueca. Nem de ibuprofeno, um anti-inflamatório tomado junto com diazepam na crise, ela me forneceu receita. Era para eu ver isso com o clínico, porque ela não faria. Ressaltei que a amitriptilina não tomo “para o autismo”, mas para a enxaqueca, e que o único benefício da amitriptilina em relação à neurodivergência foi me possibilitar dormir. E assim, sem que ela seguisse o protocolo de manter só o que funcionava, ela me botou para fora do consultório com receita para um terço do que funciona.
Não sem antes tentar me convencer que não tinha o dever de me atender antes de quatro meses, porque eu estou perfeitamente funcional. Para me convencer, apontou meu colar de autista e disse que quando uso meu privilégio da prioridade tiro o lugar de alguém e que para me atender com mais frequência - “uma vez por mês como você quer”, falou com desdém – “você vai tirar o lugar de alguém. Você quer que eu agende?”, perguntou apontando para o computador. “Eu agendo. Tiro o lugar de alguém? Você quer que eu tire o lugar de alguém? Eu marco para semana que vem já”, dizia já acedendo ao computador em um tom de ameaça. Atônita, me dei conta que era a segunda vez que ela usava o tom de ameaça. Na primeira, ela afirmara que havia uma longa distância entre mim e um esquizofrênico surtando na frente dela, o qual seria inclusive, imediatamente direcionado ao CAPS. E atônita respondi que ela não podia colocar essa responsabilidade de “tirar a vaga de alguém” sobre mim. Por fim, quando simulou que marcaria para semana seguinte já o meu retorno, deixei claro que não tinha necessidade nem energia para estar com ela na semana seguinte.
Por fim, ela usou de novo o gancho da minha prioridade e “funcionalidade perfeita” para elaborar a seguinte pérola: “Em se tratando de prioridade, se há um paciente mordido por uma cobra e um paciente com um cortezinho que vai precisar de dois pontos…”. Não sei como ela fecha a linda analogia capacitista, pois estava processando que eu era o paciente do cortezinho e que já estava no esforço de me conter e não de me debater. Pedi a receita e levantei para sair. Ia deixando a jaqueta, que ela apontou na cadeira. Já na porta de novo com a jaqueta na mão, disse de voz embargada: “Eu só aguento isso por causa da dor”. Me referia, claro, à enxaqueca. O sofrimento invisível que ela invalidara eu já manejara por 15 anos sozinha por causa de pessoas como ela; manejaria de novo sozinha, não fosse a enxaqueca.
O Sofrimento Invisível e a Moral Dilapidada
Na farmácia não pude conter o choro. Uma senhora, possivelmente analfabeta, tentou entabular conversa e não pude interagir. Por sorte um senhor interveio e a ajudou no que nem sabia que precisava até começar a falar comigo. Por causa de divergências em meu nome não consegui pegar o remédio e meu dia foi engolido por um shutdown e uma ansiedade galopante.
O Transtorno do Espectro Autista é uma deficiência invisível. O meu sofrimento — e eu usei essa palavra— o meu sofrimento, ele existe todo dia. Eu não posso ficar quatro meses sem acompanhamento. Eu preciso de um profissional que me acompanhe, que me ajude a entender o que eu vivencio, porque eu mesma não tive suporte para entender o que vivencio. Eu estou me estudando, eu estou me autoanalisando, eu faço uma autoetnografia, como foi bem dito pela IA quando eu comecei a postar os meus textos e pedi análises e revisões gramatciais . Mas eu não deveria ser a especialista no assunto e, sobretudo, não posso assinar a receita ou o encaminhamento. Dependo de gente com essas ferramentas, que infelizmente se colocam no serviço público para servir a si mesmas, com a empatia zerada e o preconceito como motor.
E essa analogia do cortezinho é o senso comum em relação ao autismo e a qualquer deficiência invisível. Esse comportamento foi criminoso. “Você quer, eu te dou, mas você está tirando de alguém.” Isso é cruel, é desumano. E ao mesmo tempo de uma burrice que não consigo processar, pois ela mesma se rebaixou a assinadora de receita. O triste é que ela não está ali para ver um ser humano, para analisar um contexto. E o contexto importa quando se trata do autista. Justamente para o autista, que tem dificuldade de ler os contextos, é para quem o contexto importa extremamente. O contexto da sua história, da sua vida, da sua biografia. Porque o sofrimento do autista nível 1 de suporte é invisível, mas é imenso. E diário.
Análise Final: Um Retrato do Capacitismo Estrutural no SUS
E como uma autista sem suporte, ali sozinha no consultório, minha moral é dilapidada no prontuário e não tenho suporte nenhum do único sistema no qual eu poderia encontrar alguma ajuda. Isso me fez refletir que minhas consultas a partir de hoje precisam ser gravadas. A conduta antiética e extremamente capacitista fere princípios básicos do SUS e minha palavra não basta.
A médica falhou absurdamente no acolhimento e na escuta qualificada. Usou de táticas de culpabilização (”tirando o lugar de alguém”) e invalidação (”cortezinho”) que são cruéis e desumanas. Desqualificou meu sofrimento por ser uma “deficiência invisível” e usou minha “funcionalidade” como justificativa para negar atendimento, praticando um franco capacitismo. Ela feriu o Princípio da Integralidade do SUS em sua recusa em analisar meu contexto e ao debochar de minha reivindicação de atendimento psicológico: “Ainda mais uma vez por semana. Só tirando a vaga de alguém que precisa para isso acontecer.”. O Princípio da Equidade do SUS ela também jogou no lixo com suas analogias pautadas em aparência de funcionalidade e desconsiderando completamente meu contexto de vulnerabilidade social e financeira. Por esse princípio, deve-se tratar os desiguais (uma paciente autista) na medida de sua desigualdade (oferecendo mais suporte); a médica me nivelou por baixo, tratando meu sofrimento como um cortezinho que precisará de dois pontinhos e por isso não é prioridade.
Conclusão: Autoetnografia como Trincheira
O que resta, ao fim, é a constatação de que a autoetnografia se torna a única ferramenta de sobrevivência e denúncia diante de um sistema que ativamente se recusa a ver. Este episódio não é um evento isolado, mas o retrato fiel do capacitismo estrutural que define o “cortezinho” como o lugar padrão do autista considerado “funcional” — cuja dor só é legitimada pelo colapso visível. O “anjo azul”, longe do epíteto dócil, é a testemunha sombria que valida a necessidade de “escarrar” essa história. A decisão de gravar consultas futuras torna-se, portanto, menos uma escolha e mais a única trincheira possível para provar que o sofrimento, mesmo invisível, existe, é diário e exige ser visto.
O Anjo Azul que ilustra este post consumiu três dias de minha semana. Em hiperfoco, ignorei os sinais de desgaste físico e acordei no domingo, de madrugada, com dores insuportáveis. Preocupada com três dias consecutivos de enxaqueca e com a dor extrema na coluna, fui a uma UPA. Não houve anamnese ou esforço mínimo para entender meu quadro clínico de enxaqueca crônica. Quando tentei relatar a relação entre essa situação extrema de dor (enxaqueca e coluna), ela me silenciou e apontou para mim, dizendo: “Calma, você está aí, ó?! Bem. Inteira!”. Ao entrar na sala de medicação, fui informada de que receberia na veia dipirona e Dramin. Ela me informara que a medicação me deixaria sonolenta, mas Dramin? Voltei ao consultório e expliquei meu quadro crônico desde 2020 e que tomo diazepam e ibuprofeno para a dor. Dipirona não resolve. Dramin não resolve. Ela, com a mesma calma que me silenciara antes, disse: “Toma pra gente ver o que acontece“. Eu apenas saí da sala, voltei para casa e, pelo quarto dia consecutivo, tomei diazepam e ibuprofeno.
No caminho para a UPA, verifiquei o gravador do celular, mas, no calor do momento, esqueci de gravar a interação da médica com uma paciente autista desacompanhada, que precisa falar por si, mas teve sua fala interrompida e foi despachada com dois minutos de consulta para uma medicação ou ineficaz que uma boa anamnese resolveria.
Obrigada por chegar até aqui.
Este relato não é um evento isolado; é o retrato do capacitismo estrutural que mulheres autistas nível 1 de suporte enfrentam diariamente.
A autoetnografia se tornou minha principal ferramenta de sobrevivência e denúncia. A necessidade de “escarrar” essa história é a única forma de lutar contra a invalidação e provar que o sofrimento invisível existe e é imenso.
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