Na terra como no céu: um grito de esperança
A cartografia do TEA nos poemas da crise e do desamparo.
Eu não queria que o autismo precedesse a escrita. Me recusei conscientemente a ser uma influenciadora no nicho da neurodivergência. Mas me comprometi a ser uma defensora do que acredito e, sobretudo, das mulheres sobre as quais o autismo acrescenta mais um peso à já pesada carapuça do gênero. Muitas dessas mulheres andam encurvadas sob esse peso e mal se aguentam sobre as próprias pernas. E ainda assim permanecem de pé com a expressão inalterada. Esta fui eu a vida inteira. E ainda sou eu.
Semana passada me organizei para fazer uma viagem muito rápida a fim de resolver questões de ordem prática, mas principalmente recuperar meus cadernos onde estão meus escritos, meus poemas grafados a mão. Nos preparativos dessa aventura me vi de repente na cadeira da dentista, que ao ver meu colar perguntou “você trabalha em algum lugar com neurodivergentes? Tem filho…?”. Ela não se mostrou surpresa diante da resposta. Quem se surpreendeu fui eu mesma, finalmente relaxada diante de uma profissional que adotou uma postura de explicar com muito cuidado tudo o que faria, percebendo a dor no peito de ansiedade. Este é o auge, não o primeiro sinal. Que estava inquieta eu já sabia. Vinha de noites mal dormidas e uma angústia muito grande por deixar Mina, minha gatinha, uma noite sozinha. E lutava para espantar as ideias mais estapafúrdias e ao mesmo tempo bem racionais de que eu poderia não voltar. A gente nunca sabe. Pode-se não voltar de uma ida à padaria da esquina. E como ela ficaria? Assumi um compromisso com ela, não poderia deixá-la sozinha! Claro ela teria um lar, como teve o cuidado amoroso do rapaz que me aluga um quarto em seu apartamento. Mas meu temor era também apego e medo de me perder dela. E tinha a dor que me levou ao dentista, os compromissos futuros e a organização de horários para que Mina passasse poucas horas sozinha em casa. Esse arranjo, além do desgaste prévio me custou 7 horas de sono na madrugada do dia 29 de janeiro e mais 16 horas dentro de um ônibus. Depois vieram dois dias de exaustão e lentidão. Mas fui produtiva. Juro! Negociei comigo mesma mais horas de descanso do que minha mente treinada para mostrar trabalho o tempo todo acha aceitável e me arrastei até o fim de semana me sentindo relativamente normal. E aí esse desgaste esbarrou em outras demandas de ordem prática. Quando velhos conhecidos fantasmas vem bater à porta é porque ela já está escancarada. O choro vem mais fácil, por qualquer bobagem externa. Internamente o engulo, como fiz em minha longa caminhada de sábado. Me permito chorar a dor alienígena de um filme, um reels, uma música, nunca a minha própria. Esta traz essa consciência de vulnerabilidade que escancara as portas para que entrem mais e mais fantasmas. Juro que negócio bem, adio o confronto o quanto posso, o quanto meu corpo pode aguentar. Mas o pobre já está muito surrado, e desaba. Talvez a dor negada vire essa enxaqueca excruciante; o descanso negado talvez vire esse desabamento que a cefaleia inicia e a medicação mantém. E a náusea talvez seja só desamparo, já que o mundo gira mais rápido do que posso encontrar algo tangível em que me agarrar. E não pude seguir a agenda do dia! Não gravei o próximo trecho de TEA menina; não gravei poemas de Perséfone EM Hades; não remanufaturei o futon que preciso vender; não programei as postagens da semana no Substack. Em um sinal de resistência postei Adiamento, poema que descreve uma crise como essa em 2006, antes de a medicina achar por bem me diagnosticar com depressão profunda, depois com bipolaridade e por fim com sem-vergonhice empenhada em evitar o trabalho. Este último diagnóstico respaldado pelo mundo no mecanicismo de suas engrenagens burocaráticas.
Em outro ímpeto de resistência escrevi os primeiros parágrafos desta crônica. O corpo para e a mente nem sempre acompanha, e muitas vezes tece considerações como “Hoje é melhor morrer sem precisar me matar. Morrer assim, calada, sufocada no buraco do meu próprio não-ser, ouvindo-me respirar.”. Acho que a sonoridade da rima lubrifica as engrenagens e facilita o desligamento reparador. E demorei para entender que o fim iminente seria temporário. É difícil aceitar a paralisia compulsória quando o furor do mundo exige o funcionamento ininterrupto e a energia inesgotável. A culpa é uma sombra permanentemente projetada por um organismo cuja indolência é mascarada pela resistência à dor física ou pelo costume de ignorá-la. E estou tão cansada. Exatamente como quando meu trato direto com Deus se manifestou em um ato sacrílego de subversão da conhecida oração. Extrema Unção! Não ligo muito para as hierarquias nessas horas e fui sacerdote e moribunda na mesma carne. Nem sei se acredito! Falo com ele de tempos em tempos sem uma resposta direta e não me parece justo que, tendo eu eliminado os intermediários, ele não possa ter a gentileza de fazer o mesmo. Especialmente porque o gênio ruminante que opera em segundo plano nesse meu cérebro divergente repete “assim na terra como no céu”, até que eu adentre o sentido do verso. Se deveria ser na terra como é no céu, por que esse inferno, Deus? É nessas brechas que requisito provas. Na terra como no céu, senhor. Na terra como no céu!!
Já trilhei o caminho estreito e pedregoso. Deixa-me entrar. Posso escrever melhor na luz dos teus jardins do que nessa penumbra subterrânea.



