Memorial Descritivo Pequenos Afetos
Você já fez um? Já pensou seus processos de criação e como eles criam você?
Desde o início de meu trabalho como professora de pintura na Rua da Cidadania de Santa Felicidade, em Curitiba, a incumbência de realizar uma exposição dos alunos revelou-se a mais delicada e menos auspiciosa das tarefas. Por tratar-se de um grupo heterogêneo, em constante mudança, sem vínculo maior do que o interesse, muitas vezes superficial e desavisado pela arte da pintura, torna-se difícil propor qualquer projeto a um espaço expositivo. Há também uma carência de espaços destinados à celebração do trabalho do estudante que frequenta os cursos, de modo que é necessário disputar espaço com os artistas profissionais, sem contar com o crédito ou o prestígio dos mesmos, nos espaços consagrados à arte que a cidade de Curitiba dispõe. Elucubrações como essa acabam por desestimular tanto quanto a rotatividade de alunos, que não permite, na maioria dos casos, o desenvolvimento técnico e criativo dos frequentadores.
Foto da Mostra Coletiva Eden, realizada em 2019.
Foram necessários quase dois anos à frente do curso de pintura para haver confiança suficiente para o embate. O primeiro passo foi descobrir uma maneira de legitimar a proposta a ser apresentada ao espaço expositivo pleiteado, elaborando uma poética para o trabalho dos alunos. A expressão "grupo heterogêneo" tem o caráter apaziguador e não deixa entrever as complexidades de um grupo composto por pessoas com idades de 12 a 80, e diferentes vivências e propostas para a atividade da pintura. Conciliar as diferenças era primordial. E apresentar um trabalho original era o desafio, já que a reprodução de trabalhos alheios é uma prática comum no curso, justamente pela liberdade de escolha de cada participante. Uma poética se fazia necessária. Contudo, a poética é o produto de uma temática, uma linha de trabalho, um fio condutor sobre o qual ela é tecida. Estender esse fio esbarrava na liberdade dos alunos, pois a escolha do que seria pintado sempre foi prerrogativa do aluno. A tentativa de direcionar essa escolha para fins didáticos, até então, revelou-se uma forma de espantá-los do curso, pois não só procuravam aprender a pintar para satisfazer seus próprios padrões estéticos, como muitas vezes refugiavam-se na zona de conforto, evitando os grandes desafios, os confrontos com o novo ou o desconhecido. Assim, tematizar poderia significar perder alunos antes e durante o processo e, consequentemente, comprometer o resultado. Por sorte a questão muitas vezes encerra a resposta e, assim, se a clientela em questão é movida por seus gostos e afetos, seriam os gostos e afetos então.
O comprometimento dos alunos com o processo criativo e a realização do proposto era essencial, pois o vínculo afetivo com o trabalho a ser realizado era a única garantia de seu término, visto não haver respaldo de outro gênero para obrigá-los a terminar a obra, ou mesmo a cedê-la à exposição na data estipulada. Posso dizer que a carência de um mecanismo legal de comprometimento do aluno com o curso alavancou meu processo criativo, todavia alavancou ao mesmo tempo um processo de angústia e insegurança devido à instabilidade do relacionamento.
Se a tematica flanaria pelo universo dos afetos a fim de servir a necessidade dos alunos, tornou-se essencial para mim que também servisse a um fim didático. A forma de alcançar esse segundo propésito foi a busca por ampliar a percepção de cada um quanto a temática explorada em sua propria pintura. Ao invés de um olhar para fora em busca de um objeto a serrepresentado, requisitei um olhar para dentro, em busca dos afetos, das memórias e das histórias que as habitam. Sim, a representação dessas memórias é um objeto. Era imprescindivel que fosse pequeno, e capaz de encerrar sentimentos imensuráveis e a vontade avassaladora de representa-los em todas as suas cores. Formado o vinculo afetivo com o projeto, o objeto encontrado precisava ser captado em seu melhor angulo, numa composição precisa, que revelasse o seu valor enquanto objeto de afeto e não apenas objeto. Esse exercício de composição e fotografia, além de refinar o Olhar, tinha o propósito de desvelar o potencial dos cenários que nos cercam, E admito, mais uma tentativa de liquidar o hábito de reproduzir as pinturas de revistas instaurado há muito no curso, valorizando assim o universo particular, os arredores, a vizinhança, os pequenos guardados, e os tesouros à vista.
Toda essa pesquisa aconteceu no primeiro semestre de 2015. Alguns alunos declinaram por não querer assumir compromissos a longo prazo, outros por serem iniciantes e não estarem seguros da própria capacidade.
No início do segundo semestre foi dada a largada para o início da pintura propriamente dita. Antes, porém, foram convidados a assumir por escrito o compromisso de finalizar a obra e expô-la, pois, uma vez enviado o projeto ao espaço expositivo, precisávamos apresentar o prometido. Foram quinze adesões espontâneas e conscientes. E ficaram livres para administrar seu tempo, finalizar as telas em andamento e começar a sua obra prima. Assim, livres e entusiasmados.
Para alguns, cinco meses foi tempo de sobra, para outros não foi o bastante. Apenas seis telas foram finalizadas até dezembro. Três careciam de pequenos acabamentos e seis ainda exigiam muito trabalho.
Quando as aulas reiniciaram em 2016, uma das participantes não quis voltar. Todas as questões relativas ao compromisso assumido foram levantadas e ela retomou o trabalho a contragosto. Todavia, não havia vontade e o projeto era a justificativa para o desgaste, pois havia exigido muito dela, e meu pedido para a sua adesão foi considerado precipitado. Meu julgamento considerado errôneo. A solução foi liberá-la do compromisso, a fim de não comprometer o rendimento dos outros alunos e o meu próprio.
Outra aluna, adolescente de treze anos, com um trabalho incrível, um talento nato e tela praticamente pronta, recusou-se a retomar o curso. O motivo: considerava sua tela a mais feia de todas e não queria expor. Uma terceira, com a tela pronta há meses, pediu para sair. Não atendeu mais telefone e não explicou os motivos de sua saída. O termo de compromisso assinado, sem o respaldo legal da instituição que oferta o curso, sequer serviu para que a mesma se desse ao trabalho de justificar sua atitude.
O resultado é que não tínhamos as 15 telas prometidas. A solução foi pedir a pintura de três novas telas, em tempo recorde, para alunas que já haviam terminado, ou que reconsiderassem sua adesão ao projeto.
Mais duas alunas que terminaram as telas deixaram o curso justificando sua saída pelo desgaste do projeto. Credito o desgaste à recusa por abordar questões mais técnicas da pintura, ou mesmo a falta de entendimento de que sensibilizar o olhar é a parte mais importante da pintura e de que isso pode ser feito diariamente a qualquer momento, ou o tempo todo, sem comprometer um segundo do dia, sem retirar o tempo de outras atividades cotidianas.
Em suma, uma pesquisa dessa monta traz à tona o que há de melhor, mais rico e criativo no humano, mas também traz à tona o medo do novo, o medo do fracasso, o medo da superexposição. São os mesmos medos que acometem o artista profissional, mas há que se considerar que este se prepara para enfrentá-los. Enquanto que o artista amador ama sua liberdade a confere à Arte um valor mais terapêutico. Trata-se da arte como fuga e não como confronto, e quando ela exige o confronto com o déficit técnico e cultural, perde o seu valor para este indivíduo, que a descarta.
Ainda assim, o saldo é positivo. Há um novo projeto em desenvolvimento, com ampla adesão dos alunos remanescentes e em parceria com o outro professor de pintura da Administração Regional Santa Felicidade, As quinze telas foram finalizadas. O esforço foi redobrado por parte de todos para alcançar este propósito. A exposição é um grande feito e festeja o progresso e o esforço de todos. O espaço aberto para os alunos que não aderiram ao projeto revelou-se um estímulo a mais. O próximo projeto de pesquisa artística será finalizado antes que a proposta seja enviada ao espaço pleiteado para a exposição. Há que se deixar uma margem para desistências mesmo assim.



