Kintsugi: A Poesia Como Refúgio, Repositório e Aglutinante
Mais um poema da adolescência visto e sentido pelas lentes da neurodivergência. Poema escrito entre 1993 e 1998. Titulo "revelado" em 30 de agosto de 2025, nas meditações que seguem
“Vestido de Casinha”, o preferido aos 5 anos
Kintsugi
Sinto que há um passado remoto
Se infiltrando no tempo presente
em lapsos que me tomam de repente
e que tomo por algum desejo secreto
Na verdade são mais sensações do que recordações
Sinto o vento acariciando o trigo nos campos
e o cheiro de flores selvagens vindo de todos os cantos
Sinto a essência da terra: montes, planícies, oscilações
Ouço os meus passos sobre gravetos
ouço meu coração, arfante de entusiasmo
Sempre, por milésimos de segundo caminho a esmo
por estes latentes sentimentos
E sempre encontro paixão por esse lugar
Onde há sobre uma planície um castelo
Visto de lá o mundo parece belo
e dele só beleza eu posso enxergar
Sinto alegria vindo de choupanas
Cheiro de comida simples e saborosa
delicadas fragrâncias de lírios e rosa
e o toque de sedas e texturas diáfanas
Kintsugi: A Arte de Remendar com Ouro
Este poema é um convite para uma viagem interior, uma busca por um "lar" que não se encontra no espaço-tempo presente, mas sim nas memórias e sensações de um passado distante ou inventado. Parece bobo, eu sei. O poema sugere, talvez, uma memória ancestral ou de outra vida. Alguns desses poemas da adolescência parecem admitir a possibilidade de vidas passadas e memórias que podem ser intuídas ou resgatadas. Presumo que haja nisso algum resquício de minha relação com Maria Helena, minha patroa no mercadinho onde eu trabalhava. Sim, meus primeiros 13 anos de vida foram um episódio de híbrido de "Todo Mundo Odeia o Chris" e "Irmão do Jorel": eu trabalhava em um mercadinho de conveniência (de bairro) e ninguém sabia meu nome; uns poucos me me conheciam por “irmã da Zilda”.
A Força de um Vínculo
Maria Helena foi minha primeira relação verdadeiramente humana, o que é estranho porque ela era uma jovem de 29 anos. Mas livros forjam vínculos, e ela estava sempre lendo no caixa do mercadinho, e sempre conversávamos sobre "O Livro dos Espíritos" e, mais tarde, "Muitas Vidas, Muitos Mestres", de Brian Weiss. Minha genitora, que me proibia de ler, chegou a ter ciúmes da minha relação com minha patroa, e por um tempo eu quis que Maria Helena fosse de fato minha mãe. Certa vez, ela me disse que eu era mesmo como uma filha. Talvez a filha que perdida aos seis meses de gravidez, antes de ter seus dois meninos.
Mas mesmo vindo dessa “boa influência”, as crenças nessa espiritualidade reencarnatória esbarraram nos limites da racionalidade que me guiava. Sem respostas concretas, "no lo creo en las brujas…". Mas Maria Helena marcou muito minha vida. A última vez que a vi, eu tinha 17, talvez 18 anos. Ela me deixou sozinha em sua sala de estar por alguns minutos e eu caí no choro. Voltou e ao me flagrar chorando saiu de novo sem me oferecer nada. Não sei quanto tempo durou a crise de choro, mas pareceu uma eternidade. Quando me despedi, ela se portou como se nada tivesse acontecido. Nunca mais a procurei.
Detalhe da estampa na saia do “vestido de casinha”
A Criação de um Lar Interno
Eu era uma adolescente sem lar quando escrevi esse poema. Diz a psicologia que precisamos criar uma mãe interna a fim de nos tornarmos responsáveis por nós mesmos efetivamente. Antes de criar essa mãe interna, acho que criei um lar.
Lido da perspectiva neurodivergente, o poema se torna uma poderosa janela para o mundo interno de uma pessoa que encontra na dissociação e na construção de um mundo idealizado uma forma de lidar com a realidade esmagadora. É um mecanismo de sobrevivência psicológica. A adolescente autista, sem o diagnóstico ou o apoio de que precisa, utiliza a imaginação para construir um mundo onde não apenas está segura, mas também é capaz de sentir alegria, paz e pertencimento.
A sinestesia cria uma atmosfera onírica e intensa. Ao fundir os sentidos, o poema constrói um mundo imersivo, onde o lar pode ser internalizado e projetar uma ideia de felicidade, como as sombras no mito da caverna.
O Poder Alquímico da Palavra
Escrever uma ode à nostalgia de uma experiência não vivida é algo de partir o coração e, ao mesmo tempo, remontá-lo com um aglutinante nobre e dourado. Essa metáfora sublinha o poder da mente, capaz de criar um refúgio em meio à dor. E revela uma profunda solidão daquela jovem autora, que só pode encontrar afeto e conforto nos mundos que ela mesma criava. E, talvez, acima de tudo, o poder alquímico da palavra, que narra um desfecho diferente do prognosticado pela realidade e, ao fazer isso, semeia a possibilidade de outro futuro.
A ciência de estar fugindo do mundo faz desses momentos de dissociação que o poema descreve uma resposta neurológica e emocional à sobrecarga sensorial e ao trauma. Mas também evidencia uma reprogramação que usa a experiência estética para preservar o bom e o belo. Ao me proporcionar refúgio temporário nesses "lapsos que me tomam de repente", por meio da poesia, pude transformar episódios de dissociação em fonte não só de alívio, mas de restauro. Versos que nomeavam e organizavam sensações e as alocavam no castelo da planície, onde uma atmosfera de serenidade as tornava perenes moldam a pedra filosofal de uma alquimista acidental que precisava desesperadamente transformar o chumbo depositado em suas costas em ouro.
E um "coração, arfante de entusiasmo" sugere uma alegria que a vida real nega, mas que pode ser sentida plenamente em um refúgio mental. E o caminhar a esmo transforma o sentimento de estar à deriva no mundo em uma jornada guiada por "latentes sentimentos", que se desvelam na cadência dos versos, mostrando que, internamente, há um propósito intuído.
A musa guia por linhas tortas, mas sublimes.




