Helena, talvez troiana: a dor de um adeus sem explicação
Um poema, um trauma e a jornada para dar nome à dor de uma adolescente que não se encaixava. Escrito entre 1996 1 998.
Desenho de 2008
Helena, talvez troiana
Tantas vezes ensaiei este monólogo
Que desperdicei rimas e até perdi a conta
Tantas palavras joguei pela noite afora
Que agora de procura-la fico tonta
Na presente tentativa busco a redenção
de um sentimento velho e rabugento
que ataca feroz minhas lembranças
e faz da memória um lúgubre lamento
Talvez seja fruto de um profundo egoísmo
esse dolorido desejo de tornar conhecidas
as ruínas da confiança que partilhamos
num curto e marcante tempo de nossas vidasO poema e a cadência do passado
O título original do poema sempre foi "Helena", porém os versos de Drummond em "Balada do Amor Através das Idades" sempre reverberaram em minha mente a cada releitura do poema renegado entre as tolices impublicáveis da adolescência. E desta vez não foi diferente, e em diálogo direto com poema Kintsugi determinou o mote da semana. E tudo faz sentido. Há uma cadência nos acontecimentos passados que possibilita o agora. Finalmente, o título pode expandir o poema, evocando os versos de Drummond. E não, esta Helena não poderia ter me salvado.
Uma amizade em ruínas
Tendo passado um ano desaparecida após fugir de casa aos treze anos, retornei a Foz do Iguaçu e morei por algum tempo com Maria Helena, o marido e os dois filhos de 10 e 6 anos. Como nos dois empregos anteriores, tornei-me doméstica, desta vez em sua casa. Pela manhã, limpava a casa e, à tarde, limpava o mercadinho. Um quarto começou a ser construído para mim no grande galpão que interligava a casa e a loja. Era algo meio esquisito e improvisado, dentro de uma estrutra bruta com chão de concreto abarrotado de paletes de mercadorias e poeira. Enquanto o quarto era construído, eu dormia na sala. Quando, aparentemente, ficou pronto e recebeu uma mobília com aparência e cheiro antigos, ninguém disse nada ou me mandou ocupá-lo. E continuei dormindo na sala por mais alguns dias.
A humilhação do adeus
Depois, só me lembro de estar no carro com Maria Helena, que, assim como me buscara, estava me levando até a casa de meus pais. Eu chorava, como se diz, copiosamente. E ela me disse: “Eu avisei que você acabaria me traindo”. Nunca soube do que ela estava falando. Mais tarde, revisando cuidadosamente o que fora vivenciado, percebi apenas algumas hostilidades vindas do seu marido e nada mais. Eu não entendia linguagem indireta. Precisava que as coisas fossem ditas. Tinha pouca bagagem e minha leitura de mundo era rudimentar.
Ser devolvida para a família como uma coisa indesejada, sem explicação alguma, mesmo que incoerente, foi extremamente humilhante. Ainda assim, precisei visitá-la mais uma vez para me certificar de que não havia mais nada da confiança que partilhamos e cortar o vínculo de vez.
As meditações suscitadas pelo poema me possibilitaram confrontar a severidade desse corte, ou talvez de minha própria natureza neurodivergente, pois não senti necessidade de olhar para trás ou procurar por essas pessoas nas redes sociais desde o advento da internet. A curiosidade, no entanto, foi aguçada; afinal, hoje em dia há essa facilidade de rastrear pessoas pela web. Para minha surpresa, não me lembrava mais do sobrenome de Maria Helena. Com algum esforço, rememorei que seu sobrenome de solteira começava com B e havia o adicionado pelo casamento, do qual não havia rastros. "Balducci" foi a primeira tentativa no rol de sobrenomes cuja sonoridade me levasse àquele canto da memória onde enterrei esse passado. E, por fim, surpresa, lembrei e com menos esforço do que supunha. E a localizei pelas redes. Ou acho que localizei, usando apenas o sobrenome do marido e com um rosto que não era o que eu me lembrava.
Aturdida, percebi que, na verdade, não me lembro mais do rosto e aquelas feições estranhas me pegaram de surpresa. Por um momento, preferi acreditar que aquela não era a mesma pessoa, mas o nome dos filhos conferia. Os quatro naquela foto de família datada de 2022 não tinham nada de familiar para mim. Quando os revi anos atrás, os meninos, embora fossem adolescentes, pareciam dois homens gigantescos e musculosos. Na foto eram só dois homens medianos ao lado de uma mulher morena e estranha e de um homem de cabelos completamente brancos, com mais bochechas e mais cabelo do que eu me lembrava que “Seu Paulo” tinha há 30 anos atrás. Talvez não fossem as mesmas pessoas? Mas Foz do Iguaçu estava na rota de sua existência, embora não parecesse mais o seu endereço. Maria Helena, se for a mesma pessoa, se tornou uma professora em uma universidade da Califórnia. Professora de espanhol. Ela é paraguaia e fala espanhol e português perfeitamente, sem qualquer sotaque. Eu a ouvia em longas ligações com a família, num "castelhano" perfeito. E não fosse isso, ninguém saberia que ela era paraguaia, apesar de seus traços denunciarem algo da ascendência indígena. Já o marido, pelo sobrenome, talvez fosse de ascendência americana. Isso explicaria uma mudança de país. Um dos meninos parece estar no Brasil, e um deles – o mais novo – seguiu uma carreira artística por um tempo e agora seu nome está vinculado ao comércio de veículos. Desde 2022 não há sinais deles nas redes sociais.
A busca e o reencontro com a memória afetiva
Não precisei de mais do que 15 minutos para essa digressão e, no entanto, custei bastante tempo para me recobrar do fato de não reconhecer fisicamente Maria Helena. Passado o choque, algumas memórias foram voltando para mim. Ela costumava abrir de supetão a porta do depósito cantando “De que vale o sol azul e o sol sempre a brilhar…”, sempre por volta das 17 horas, pois a partir desse horário meu crush poderia aparecer a qualquer momento. Eu adorava. Achava carinhoso e uma forma de acolhida do meu sentimento pelo menino. Ela o chamava de “dulce de leche”, porque era assim que sua mãe uruguaia o chamava. Tínhamos esse afeto de amigas e confidentes, e eu sabia de coisas sobre ela que nem entendia na época, mas que ela se sentia à vontade para confidenciar.
Ainda tenho, acredito que guardado em Curitiba, o caderno que ela fez para mim. Adorava sua letra, e ela encheu o caderno de músicas do Roupa Nova e textos. Inclusive um famoso, que suponho ser de autor desconhecido:
Precisa-se de um amigo
Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos o são. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas. Seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.”
Lamentei não encontrar o caderno junto com as coisas que trouxe comigo para São Paulo. Espero que esteja de fato guardado em Curitiba. Se não estiver, pelo menos tenho a certeza de que tive, por um curto tempo, uma amiga. E ela, de algum modo, foi vital para que eu pudesse ser quem eu sou e buscasse viver e não apenas existir.



