Exatidão: Um Poema, Um Sonho e Um Casamento
Digressão que se desdobra em uma jornada pessoal sobre autismo, masking, a armadura de Sia, a calma de Chopin e um sonho de autoaceitação. Um convite à sua própria autenticidade

Exatidão
Eu rezo por uma chuva calma e constante
Que se faça ouvir no fundo do coração
Que livre-me da dúvida e da confusão
Porque estou em uma situação degradante
Tento fugir de minha própria verdade
Não admito que sou como me sinto
Ninguém sabe que não sou como me mostro
Enganar a todos é minha grande habilidade
Sei porém que a verdade sempre falou alto
Se eu não a ignorava, minha vontade vencia
Mas agora me vejo em meu tamanho exato:
pequenos sonhos cobertos de grandes mentiras;
ilusões inocentes de que a alma não se sacia,
e que me subjugam e duplicam minhas torturas
Exatidão, o Espelho da Alma e a Dança Mística da Autenticidade
“Exatidão” é, em muitos aspectos, mais do mesmo. Escrito na adolescência, em um tempo anterior ao autoconhecimento que viria com o diagnóstico de TEA, o poema é a voz de uma jovem que, sem saber, descrevia a complexa dança do masking – o esforço exaustivo para se adaptar, para “enganar a todos” com uma “habilidade” que custava a própria essência. É um pedido por uma ajuda que não sabia precisar ou expressar fora do escopo da escrita dorida que pensava ser restrita a essa fase turbulenta da vida.
A passagem “Mas agora me vejo em meu tamanho exato...” é um soco no estômago, a dolorosa clareza de me ver sem filtros, sem as máscaras que o mundo exige. E isso me conduziu por diversas digressões.
Uma delas atravessa meu processo terapêutico. Não, eu não faço terapia como o suporte mínimo necessário a um portador do Transtorno do Espectro Autista, e sim como vítima de violência doméstica. Mas foi como autista que, depois de meses evitando o assunto, o abordei por meio da poesia e da música. Isso me rendeu um exercício: eleger cinco músicas para cinco sentimentos: alegria, medo, raiva, vergonha e calma. E “Exatidão” me remeteu a uma delas: “Unstoppable”, da Sia.
Diferente do significado de força e invencibilidade a ela atribuído, sempre ouvi medo na canção. Talvez porque durante a pandemia de COVID-19 eu a usasse muito em conteúdos produzidos para as redes sociais nos quais vendia cursos, futons, rifas... qualquer coisa que me possibilitasse sobreviver. Durante dois anos, a atmosfera de medo reinante teve essa trilha sonora que o contradizia em palavras, mas o reiterava na potente interpretação de Sia. Para mim sua voz transmitia a vulnerabilidade mascarada de “porshe sem freios”, “armadura". E, para minha surpresa, quando o diagnóstico veio, soube que Sia é autista. O masking que ela relata em “Unstoppable”, e que já era palpável para mim, passou a se materializar como uma pedra no meu peito a cada vez que ouço a canção. E, ora veja, Sia também usa a metáfora da armadura, presente não só nesta música como em “Titanium”. Porém, esta canção trouxe o seu contraponto, também aventado para a lista, no pódio da calma: “Raindrops”, de Chopin. O piano sempre me acalma, e os noturnos e este prelúdio já foram trilhas sonoras por meses a fio.
Mas a digressão pela música não bastou. Súbito, o poema encontrou um eco inesperado em um sonho... um sonho de um casamento sem noivo, em um espaço aberto, sob uma garoa tão fina que parecia uma brisa. “Um casamento comigo mesma”, pensava eu, há cerca de quinze anos, quando passeava por esse cenário luminoso e calmo, tecido por camadas de garoa que me recobriam como um véu de purificação.
Dessa união de sensações – a poesia da busca interior e a atmosfera etérea do sonho – nasceu a imagem que ilustra esta postagem. A iridescência no céu, como uma madrepérola, evoca a magia dos sonhos e a beleza do espectro de cores da alma que se revela.
Esta imagem é um convite a olhar para dentro. É um lembrete de que, mesmo em meio à garoa da vida e às exigências do mundo, a “Exatidão” de nossa verdadeira essência sempre nos aguarda, por vezes em nosso próprio reflexo, pronta para um “casamento” com a autenticidade.
Que este poema e esta imagem inspirem você a encontrar sua própria “chuva calma e constante” e a abraçar seu “tamanho exato”, em toda a sua complexidade e beleza.


