Exaspero': Quando a Arte Encontra a Neurodiversidade e a Cura
Explore o poema 'Exaspero' por uma adolescente autista nível 1 de suporte. Mergulhe na análise profunda sobre sobrecarga emocional, desafios sociais e a busca por autoconhecimento.
Detalhe da ilustração 11 de Helena Queria o Chapéu (em processo)
Peço perdão às forças que regem o universo, pois mais uma vez desejo um privilégio: não quero ter da emoção nenhum vestígio; quero, de tanta razão, meu espírito perverso. Não quero mais ver além da matéria, que nem reste sombra da imaginação. Não quero nem prazer, nem satisfação; sem desejar fartura, não se vê a miséria. E meu amor... é completo e completo se dá. O amor é a arma que me domina e me fere, é a ilusão que me atrai e me repele, me faz antes sentir e depois racionalizar. Não quero mais senti-lo, nem a falta que faz; quero me esconder de quem não pode entender. Dispenso essa sensibilidade que me faz padecer e, em minha alma, dispenso impressões digitais. Peço perdão, pois é vergonhoso o que sinto. A mágoa sobrepujou todo bem que contenho; nem meu sonho é sustento para meu empenho. Não confio mais na precisão do meu instinto. Portanto, já me bastam só as impressões da carne. Me cabe apenas um olhar firme e impenetrável. O sangue em minhas veias é líquido inflamável. Não desejo que seu fervor meu espírito condene.
A Luta Contra a Sobrecarga Emocional e Sensorial
Um dos motivos deste poema ter permanecido inédito em meu caderno da adolescência, está na crença de que se tratava apenas de uma bobagem da idade. Ao analisar "Exaspero" sob a ótica de uma adolescente autista nível um de suporte, o poema ganha camadas adicionais de significado, ressoando com desafios e percepções frequentemente associados a essa neurodiversidade. O título, "Exaspero", por si só, já evoca um estado de esgotamento e sobrecarga, que é uma experiência comum para muitos autistas diante da intensidade do mundo.
A busca por se despir de emoções e sensibilidades, tão evidente no poema, vejo agora como um mecanismo de autodefesa contra a sobrecarga. Muitas vezes senti esse desejo profundo de mitigar a intensidade das experiências que, para uma pessoa autista, podem ser avassaladoras. As emoções, tanto as próprias quanto as dos outros, podem ser percebidas como um sistema complexo e por vezes caótico, difícil de decifrar e gerenciar. A lógica e a razão oferecem um refúgio seguro, onde as regras são claras e o caos emocional pode ser minimizado.
Desafios na Interação Social e na Compreensão do Amor
Para adolescentes autistas, a compreensão e expressão do amor e das relações interpessoais podem ser desafiadoras. A dificuldade em interpretar sutilezas sociais, as expectativas não ditas e a intensidade das conexões emocionais podem levar a experiências dolorosas.
A descrição do amor como "arma", "ilusão" que "trai e repele" reflete experiências de má interpretação de intenções alheias, sentimentos de inadequação em relações ou a dor de tentativas frustradas de conexão. O verso "me faz antes sentir e depois racionalizar" sublinha a dificuldade de processar emoções em tempo real, exigindo um período de análise posterior para tentar compreender o que ocorreu.
O poema desvela uma profunda solidão e um sentimento de vergonha. Muitas pessoas autistas experienciam a sensação de serem incompreendidas ou julgadas por suas reações e formas de ser. O desejo de "me esconder" é ainda muito familiar e o poema é uma evolução do meu desejo de infância de fugir para mundos encantados ou para uma ilha deserta, evitando assim esses julgamentos e a exaustão social que a interação pode causar. Mesmo sem ir fisicamente, sempre me protegi nesses mundos, e “Exaspero” resguarda o desejo de proteger esse mundo interno.
O verso "Não confio mais na precisão do meu instinto" é um ponto crucial. Para uma pessoa autista, o instinto social ou emocional pode não ser um guia confiável, pois a forma como o cérebro processa informações sociais é diferente. Isso pode levar a erros de interpretação, a um sentimento de desconfiança nas próprias reações e à necessidade de desenvolver estratégias cognitivas para navegar o mundo.
O desejo por "apenas as impressões da carne" e um "olhar firme e impenetrável" sugere uma preferência pelo concreto, pelo observável, em detrimento do abstrato e do emocional. É um anseio por um mundo mais tangível e menos ambíguo, onde as regras são claras e as interações são mais previsíveis.
"Exaspero", sob essa perspectiva, não é apenas um poema sobre dor e desilusão de uma adolescente intensa, mas um desabafo de uma mente que luta para processar a vastidão e a intensidade das emoções e interações humanas. A adolescente expressa um desejo, quase utópico, de se desligar do que a sobrecarrega e a confunde, buscando refúgio em uma racionalidade que promete mais controle e menos dor. O poema é um pedido de perdão pelo que sente e pelo que não consegue sentir da mesma forma que os outros, revelando a complexidade e a profundidade de sua experiência interna. É um eco da busca por um espaço seguro e compreensível em um mundo que nem sempre é adaptado às suas necessidades. E ao compartilhar esses poemas e essa perspectiva, sinto que acolho a adolescente que fui. O que me faz recordar um vídeo curto de uma rede social que se basta em uma única pergunta: “O adulto que você se tornou protegeria a criança que você foi?”. Sim, protegeria. E enquanto eu não pude a musa o fez .
Obs. O poema não sofreu qualquer alteração textual, tendo sido apenas a pontuação revisada para mais clareza.



