"Eu prefiro a noite"
Um poema sobre hipersensibilidade e a busca por um espaço próprio. Escrito na adolescência, é uma autodefinição necessária durante a adolescência.
Foto dos originais de Retrato das sombras impresso, com as notas de meu amigo Max
Eu prefiro a noite
Quando muitos buscam calor e repouso
no aconchego estéril de um leito aparente
e tantos outros, esquecimento e gozo
na vertigem da madrugada decadente
em que por gosto ensurdece a alma
a carne exposta aos vários entorpecentes
sendo toda gente à volta uma amálgama
de espíritos presos em células dormentes.
Desperto, transbordando luz e poesia, e ouso
tornar todas as coisas vistas aparentes;
e a tudo em que os olhos d’alma pouso
direciono as sombras e arestas pertencentes.A Hipersensibilidade e a Busca por um Espaço Próprio
A adolescência é uma fase complicada na qual a necessidade de integração parece ser maior para todo mundo. Minha dificuldade se aprofundava devido ao fato de que eu abominava uma vida de aparências. Ainda assim, por vezes, me sentia compelida a participar da ritualística mundana. Posso contar nos dedos das mãos as vezes nas quais observei de perto o que chamo de madrugada decadente neste poema. E a experiência veio depois dessa escrita. Simplesmente não fazia sentido para mim passar frio por horas em uma fila de uma casa noturna, para entrar em um lugar barulhento e enfumaçado onde passaria calor e não seria capaz de manter uma conversa com ninguém. Não que as pessoas fossem lá para conversar. A amiga com que eu fui nesta ocasião específica que me assalta à memória me horrorizou ao se atracar aos beijos com desconhecidos e, nesse caso, o número importava. Lembro de me assustar ao perceber que ela estava nos braços de um segundo rapaz na pista de dança e, ao perceber o olhar esfomeado de um sujeito para mim, respondi com uma carranca e me afastei. E não era puritanismo, e sim mais uma preocupação sanitária, afinal havia um compartilhamento desenfreado de saliva naquele ambiente. E, embora todos parecessem asseados, nunca confiei nas aparências, ou me deixei seduzir por elas. Especialmente em um cenário noturno de gelo seco e fumaça de cigarro, no qual os gatos são pardos e ladinos.
Ainda assim, eu entendia perfeitamente do que falava quando escrevi este poema. Isso porque eu observava e aprendia com a experiência alheia desde criança. A incoerência que observava ao meu redor desde cedo foi a argamassa das duas primeiras estrofes. Já a última sacramenta esse saber intuitivo de que eu via mais do que devia. Via as estruturas nuas, e as convenções e acordos tácitos que fundamentam as relações humanas me pareciam artifícios frágeis quando percebidos, ou vazios entre os significados, que entrecortavam reduziam sua significância.
Muitas vezes não quis ver. Mas constato nesse poema que isso era inevitável. Processar o mundo e minha própria interação com ele era uma vocação que fluía num manancial de palavras buscando encadeamento, registro e sentido. Os dois últimos versos constatam uma espécie de maldição. Ver o mundo sem seus disfarces e atavios é algo doloroso que drena a vontade de estar nele. Mas o processamento obcecado, atrasado e contínuo é como um curso de água que não parará por nada enquanto houver vazão. O poema não é um regozijo ou uma jactância. É, antes, uma constatação racional da própria posição no mundo. A "amálgama de espíritos presos em células dormentes" parece uma forma cruel de perceber as pessoas, mas expressa uma percepção da superficialidade e da falta de conexão genuína observadas e, ao mesmo tempo, evidencia o meu próprio isolamento.
A Noite como um Refúgio e o Despertar da Criatividade
A noite não é uma preferência, mas uma necessidade. Ela representa o recolhimento necessário e o distanciamento das coisas que possibilita o processamento de tudo o que está em segundo plano, esperando sua vez de integrar uma compreensão do todo. A noite, com seu silêncio e escuridão, torna-se um refúgio seguro que possibilita o desligamento do mundo externo e a imersão no mundo interior efervescente de imagens e impressões que devem ser elaboradas. O isolamento é também um despertar e a escuridão traz uma possibilidade de clareza, pois o calor do momento não permite "tornar todas as coisas vistas aparentes". Direcionar "as sombras e arestas" é uma forma de processar o mundo de maneira literal e detalhada. A honestidade intelectual e emocional de perscrutar as coisas vistas e vividas tornava-se um fardo pesado de vergonha e culpa. Minhas gafes, pelo meu cálculo, eram imperdoáveis.




