Escrita, Neuroplasticidade e os Contornos do Eu: o Amor como Invasão na Experiência Neurodivergente
Leia o poema 'Loucura ' e o ensaio inédito sobre a escrita à mão como ferramenta de neuroplasticidade e ordenação do caos.

Loucura
Em torno de você os sentimentos se aglomeram.
Parece que tomei esta alma emprestada,
e ela, saudosa, busca em frenesi, alvoroçada
retornar a você, e meus temores não cooperam.
E sigo vindo em pranto, a revolta, os clamores,
e todo o curso silêncio é tortuoso prelúdio
de mais um desconcertante, louco assédio
da sua presença em meus sentidos e valores.
A Cápsula do Tempo e a Experiência Bruta
Tenho encarado a obra Retrato das Sombras como uma cápsula do tempo. Como tal, ela resguarda a experiência neurodivergente em sua forma bruta: sem vocabulário, sem compreensão de haver uma diferença biológica ou qualquer manifestação que justificasse o meu sentir diferente.
E, quando jovens, o que mais tememos é não nos adequar; é que nossa diferença nos distancie do contexto social. Como não sabemos como os outros sentem, logo, o que quer que pareça exagerado, intenso demais, precisa ser camuflado. A poesia não só me ajudou nessa camuflagem, ao possibilitar a análise metódica desses sentimentos, mas também ao permitir escoá-los para o papel.
A Neuroplasticidade, O Ritmo da Repetição e a Estética
A escrita à mão livre, em uma época sem computador, fez mais do que proporcionar um tempo de dedicação e recolhimento para elaborar esses sentimentos: escrever à mão livre é um exercício de neuroplasticidade.
Eu preenchia cadernos com um mesmo poema. Ainda preencho. Para encontrar o ritmo e permitir a fluência da próxima palavra, da rima certa, eu reescrevia o poema inteiro quantas vezes fosse necessário. Meu senso estético simplesmente não consegue operar sem ver o poema perfeitamente escrito, por inteiro, em uma nova página. E a repetição, em minha mente, traz a sonoridade e, de algum modo, vai formando a palavra certa que não quebra o ritmo.
Conectividade e Memória Vivida
Escrever à mão ativa padrões de conectividade muito mais elaborados do que digitar, ao exigir uma integração sensorial e motora complexa. Esse processo ainda é fundamental para a formação da memória e a codificação de novas informações. Talvez por isso alguns poemas guardem uma espécie de impressão emocional que acesso ao reler. A memória, por vezes, é tão vívida que sinto-me transportada ao momento de escrevê-los.
O Amor na Bancada de Anatomia
Fato é que este poema retém as características de outros escritos na mesma época: ele escrutina, destrincha e analisa. O poema se torna a síntese de um processo metódico de autoanálise e resulta em uma maior organização.
Para uma pessoa autista — falando por mim — amar é um inferno. Mas a poesia permitiu transformar o caos interno e se tornou uma ferramenta de autorregulação. Uma mente analítica só poderia ter um pouco de paz depois de enxergar a sua perturbação ordenada em rima e rítmo.
O Homem Vitruviano e os Contornos do Eu
Ao findar o poema, o sentimento de que “esta alma não era mais minha” amaina. O poema devolve os contornos do eu, borrados pelo sentimento avassalador. Ao reescrever cada verso, busco o meu próprio Homem Vitruviano: a tentativa de inscrever o caos do meu sentir infinito dentro do círculo e do quadrado da razão e do papel.
Conclusão: Um Convite ao Mergulho
Se você espera que uma mulher fale predominantemente de amor de forma romântica, convido-o a se surpreender. Não será um passeio de rimas fáceis, mas um mergulho no inferno de amar. Um inferno dissecado e disposto em uma bancada de anatomia. Aqui nos interessa a forma, pois nela está contida a fisiologia neurodivergente de uma mulher assediada pelo próprio sentir.


