Escassez: O Grito Silencioso de 1998
Uma análise íntima do poema 'Escassez', escrito por uma adolescente autista em 1998. Entenda a luta contra a alexitimia, a sobrecarga sensorial e a busca pela magia das palavras.
Foto do manuscrito original de “Escassez”, 1998
Escassez
Estou só por conta de um poema que não vem
Minha alma tão ausente quanto as palavras
Meu sentimentos carecem de expressões que não existem
De minhas poucas palavras minha sensibilidade é escrava
Em meus tantos sentimentos poucas palavras são nada
Quais palavras dirão sentimentos que não sabem ser ditos?
Em quais palavras cabe a emoção que não sabe ser demonstrada?
De servem sentimentos divinos em meu caminho maldito?
A sensação que agora tenho é certamente melancolia
que é na verdade uma tristeza embriagada
pela alucinante luz do dia
E todas as minhas sensações podem ser definidas
de inúmeras formas, que em minha alma encontradas
perdem o sentido no contato com a vidaO Poema Perdido
"Escassez" não faz parte de "Retrato das Sombras" oficialmente. Presumo que sua forma irregular o tenha deixado de fora quando da impressão das três cópias. Mas, em algum momento, um manuscrito datado foi grampeado em uma das cópias — justamente a que tem alguns apontamentos de meu amigo Max, um professor de língua portuguesa que conheci em uma breve passagem pelo curso de teatro e cuja esposa fazia aniversário no mesmo dia que eu. Lembro de ter sido convidada para jantar com eles nesse dia, provavelmente ao completar 23 anos. Mas “Escassez” foi escrito em 1º de janeiro de 1998.
Angústia e Descoberta
Claramente, foi um momento de angústia que só essas datas conseguem evocar. “Escassez” justifica a relevância de retomar os poemas dessa fase da vida. Eu tinha 17 anos ao compô-lo e era completamente ignorante de minha condição neurológica, mas claramente ciente das dificuldades acarretadas. O poema se torna, então, um grito silencioso e uma tentativa de descrever um mundo interno que parece desconectado do mundo exterior.
A angústia se apoia no que conhece: o vocabulário. Como uma leitora de dicionários, me parecia natural que o meu problema fosse falta de palavras e não alexitimia, que não entrou em meu vocabulário até o diagnóstico, mas era profundamente vivenciada, num misto de impulso expressivo e sobrecarga sensorial.
Solidão e Autorregulação
O primeiro verso, "Estou só por conta de um poema que não vem", revela o isolamento voluntário. A busca pelo poema já é uma busca por autorregulação. Traduzir o que é sentido parece, ainda hoje, ser a única forma de retomar o controle e não afundar em um shutdown.
A ausência de alma, tão presente nesses momentos, fez parte de minha identificação — de novo — com Grenouille do livro "O Perfume". Sim, ele me parecia vazio como eu me sentia, tateando no escuro, guiado por um foco criativo amoral e atabalhoado para o senso comum, mas preciso para sua própria necessidade. E precisamente eu me sentava só, com o poema que não vinha, e contemplava minha própria perplexidade diante de um interior desregulado e inexpressável e um exterior demasiadamente “luminoso”.
Mina, a guardiã dos meus tesouros
A Barreira da Comunicação
A discrepância entre o mundo interno e o externo apresentados nesse poema ressalta a extrema dificuldade do autista em sentir as emoções de forma intensa, reconhecê-las, nomeá-las e expressá-las de forma convencional. A emoção que "não sabe ser demonstrada" não é por falta de sentimento, mas sim por uma barreira na comunicação. Há um tom trágico no fecho retórico da segunda estrofe. E há o embate entre o tumulto interno e a sobrecarga sensorial de aprender o exterior.
É exatamente como em uma enxaqueca: os sentidos se aguçam, e o que era tolerado com esforço se torna insuportável. De novo, a luz excessiva confunde o verbo e retarda o verso libertador. O corpo caminha para a desorientação, a mente luta para organizar, empilhando verbos e organizando palavras em uma sonoridade confortante, como uma mãe que inventa uma canção de ninar para o filho em meio ao desespero do choro dele e do seu próprio medo.
A Perda de Sentido
O último verso é o cerne da experiência de uma pessoa autista não diagnosticada em uma sociedade neurotípica. As sensações, que são coerentes e fazem sentido dentro de sua própria "alma", tornam-se incompreensíveis ou irrelevantes quando confrontadas com as expectativas e normas do mundo exterior. A vida, nesse contexto, é um lugar onde as formas únicas de sentir e ser perdem o seu valor e significado. O mundo era avassalador para mim. A vida me consternava.
O poema "Escassez" deixou de ser apenas uma reflexão sobre a melancolia e a falta de palavras para se tornar um documento íntimo da experiência autista. É a voz de uma adolescente que, em sua solidão, tenta nomear e entender a barreira invisível que a separa dos outros.





