Entre um Mar Morto e Vulcões Adormecidos
A Jornada de Autodescoberta no Autismo e a Busca Por Autenticidade
Vulcões Adormecidos
Hoje me falta profundidade
Mas preciso expressar algo
que embora discreto faz muito estrago
pois salienta minhas necessidades
Sinto falta de grandes expectativas
Há um calor no meu olhar insatisfeito
que busco projetar em qualquer sujeito
que me dê a certeza de estar viva
Hoje não me sinto autentica
me sinto ausente, dispersiva
Num mar morto estou à deriva
E esse silencio é uma aventura fantástica
As tantas emoções que me são nocivas
são meros aperitivos para o banquete
de deliciosas sensações que inevitavelmente
me atordoam quando a vida delas me priva
Preciso de emoção na minha vida
Embriagar-me de todas as sensações
que enxergo na alma como velhos vulcões
velhas montanhas adormecidas
Com suas vertentes de calor e fogo
enferrujadas pelo tempo, no tempo inertes
e embora sua intensidade não aparente
é ardente, inflamado, delirante o seu âmago
A Busca por Conexão e a Falta de "Profundidade"
Em 2017, escrevi um livro com a intenção consciente de exorcizar um relacionamento nocivo e uma vida estagnada e sem propósito, acreditando ser este um feito novo. Contudo, a obra resultante, Perséfone em Hades, teve um prelúdio por volta dos meus 20 anos. Nesse prelúdio, poemas como O Fogo Criador e Vulcões Adormecidos estabelecem uma linha do tempo na qual eu, claramente, estava elaborando internamente uma necessidade de mudança. O Fogo Criador aventa a partida em 1996, mas a conclusão dessa iniciativa se dá apenas em 1998, quando eu já tinha 20 anos.
A Jornada de Autoconhecimento
A falta de profundidade, detectada no primeiro verso de Vulcões Adormecidos, evidencia uma desconexão crescente e uma necessária confiança na minha própria capacidade de existir. Nessa época, eu era explorada em um relacionamento pouco saudável que me condenaria a uma vida sem estudo e sem criatividade, embora relativamente segura. Dos quatro anos investidos nesse relacionamento, claramente três foram voltados para a dissolução dos laços que eu mesma havia criado.
A necessidade de expressar algo que parecia discreto, mas que causava grande "estrago", me parece a familiar paralisia que vivi nos últimos dias, incapaz de optar por aparentes escolhas que não dialogavam com meu propósito de vida.
O Sentimento de Ser uma Impostora
A sensação de não ser "autêntica" e de ser "dispersiva" é um sentimento comum em minha vida. A chamada síndrome do impostor define boa parte do meu percurso. Me sentia interpretando um papel, sem muita certeza de ser a personagem adequada para aquela narrativa.
No entanto, o "silêncio" desse mar morto ser uma "aventura fantástica" é um paradoxo. Não se trata do refúgio na introspecção e na imaginação como uma forma de escapar de um mundo externo confuso e sobrecarregado. É um silêncio que raramente ocorre para uma mente cujo narrador interno se enreda em ruminações e digressões que desafiam a realidade. Recebido com entusiasmo, esse silêncio é, na verdade, o predecessor do desligamento. Quando até o narrador interno silencia, vem o shutdown. Tenho a impressão de que o narrador interno auxilia na memorização das coisas, como uma recapitulação involuntária, pois percebo que quando a mente silencia, eu não lembro do que disse ou ouvi. Há relatos disso na obra TEA Menina.
Os "Vulcões Adormecidos" e a Necessidade de Emoção
Mas antes de desligar temporariamente, pude evocar a imagem final do poema: os "velhos vulcões" e as "montanhas adormecidas". A percepção da intensidade interna e a abertura para essa sensibilidade, que por vezes é nociva, são essenciais para a criação da mulher que partirá em busca de seus sonhos de se educar e escrever. O poema se torna um grito por essa vivência e um gesto de coragem de encarar as sensações avassaladoras.
A releitura do poema com a perspectiva de uma jovem autista não diagnosticada em 1998 transforma o texto de um mero lamento de vazio para um retrato da luta para comunicar um universo de sentimentos e percepções que não se encaixam, ao mesmo tempo em que celebra a riqueza e a intensidade desse mundo interior que, mesmo inerte por fora, é um vulcão.





