Entre a Paralisia e a Ação
Uma Jornada de Autodescoberta Impulsionada pela Energia do Trickster Rumo à Autopublicação
O Processo Subliminar da Procrastinação
Estou em um momento estranho que parece de paralisia, mas que, na verdade, salvaguarda um processo subliminar — ou intuitivo — de processamento. Essa é, pelo menos, a percepção que tenho de meus mecanismos de sobrevivência. Sei que procrastino, mas também sei que uso interesses agudos aleatórios para amainar um processamento em segundo plano. É como se eu literalmente comesse o mingau pelas beiradas, para não me queimar. Não se pode negar que há uma sabedoria implícita nesse mecanismo, se é que ele efetivamente existe. Suponho que sim, já que o apreendi por observação, detectando o padrão comportamental. Admito que, sem um diagnóstico, não conseguiria o distanciamento necessário para me observar como um objeto de estudo, sem ansiedade e culpa. Essas duas, por sinal, parecem caminhar sempre juntas.
A Mala de Bordo e a Decisão Crucial
Fato é que passei a tarde pesquisando malas de bordo nas quais possa transportar livros. Isso se faz necessário para a participação em eventos literários e viagens breves com finalidade literária. Passei a tarde comparando preços e tentando me autorizar a comprar o que eu preciso e quero, e não o que é mais barato. Pensei na cor turquesa para materializar a identidade visual que elegi. Mas não fiz qualquer aquisição ainda. Esse aparte, tortuoso em muitos aspectos, foi um refrigério, uma distração da decisão que articulo em segundo plano: pagar os serviços editoriais de uma prestadora de serviços que carimba um selo editorial em "TEA Menina" ou optar pela autopublicação?
O Risco da Autopublicação: Virando uma "Caixeira Viajante"
Na rede sutil de pensamentos em segundo plano, tendi, até agora, para a autopublicação. Pelo menos é o que a busca pela mala indica. Penso em levar meu livro lindamente impresso pessoalmente para algumas editoras tradicionais e investir o dinheiro que iria para uma prestadora de serviço para divulgar meu livro em eventos literários. E o dinheiro seria bem usado para adquirir cópias que abasteceriam minha “mala literária”.
Tudo isso requer coragem e uma grande disposição, além de um excelente planejamento. Eu não posso me exaurir ao ponto do colapso. E, na verdade, nem saí da zona de risco. Uma manhã de espera nas filas do SUS ainda resulta em enxaqueca. Será que o que vai resetar meu organismo e eliminar essa resposta dolorosa ao mínimo estresse é me tornar esse caixeiro viajante que oferta livros como quem distribui elixires e panaceias? Não sei. Terei que arriscar.
O Louco, o Trickster e a Neurodivergência: Desvendando Estruturas
De qualquer forma, não estou mesmo em uma zona de conforto. Não custa sair e tentar. Mas assusta a articulação desse projeto. Como incluir Mina em minhas andanças? Não posso deixar a gatazana. Ela vai comigo toda vez que eu me ausentar por mais de um dia, ou toda vez que ela tiver que ficar sozinha por um dia inteiro. Me sinto meio mambembe ao vislumbrar essa nova dinâmica. Me vejo como a encarnação do louco. Será que terei a sorte que parece prevalecer nessa figura do tarot? E a argúcia que as muitas encarnações mitológicas deste arquétipo manifestaram, será que terei?
Tenho pensado muito no trickster. Sim, este é o termo mais comumente empregado para a energia deste arcano. E da mesma forma que ele se manifestou em minhas criações literárias, tomou corpo em minha pesquisa de mestrado, e agora se vincula à minha percepção da Neurodivergência. E não é Freud que explica isso. É Jung, para quem a função maior do trickster é revelar as estruturas. O trickster não enxerga o óbvio; o louco do tarot não olha onde pisa. Mas ele enxerga o que as convenções sociais escondem: as estruturas nuas. Lewis Hyde diz que o trickster busca o mundo sem mediação das normativas sociais e morais, por isso ele rouba. Ora o gado de Apolo, ora a manteiga de Yashoda. Me sinto ainda receosa de roubar atenção, mas sei que é o que preciso fazer. Da forma mais tricksteriana possível. Essa figura não me habita à toa.
Nessas últimas semanas, toda vez que pensei em abordar os assuntos pungentes que me acometeram, essa figura açambarcava as ideias. Talvez, nesse caso, o trickster fosse o assunto aleatório a me distrair de sentimentos com os quais ainda não pude lidar. Ou talvez eu possa ter, de fato, uma rede de pensamentos que se entremeiam, interconectam e geram resultados distintos ainda que derivados?! Mesmo quando escrevi a reflexão sobre os poemas de retrato das sombras — meu caderno da adolescência — cada um deles adensava um pouco a presença do trickster no pano de fundo de minhas ideias. O primeiro desta semana, por exemplo, traz a solidão que contempla um mundo rude e refratário. A falta de leitura de normas e convenções e a recusa em aceitar minhas próprias circunstâncias e sair pelo mundo, mambembe e munida só de esperança, sempre foi meu modus operandi.
Inocência, Ingenuidade e a Crueldade das Estruturas Sociais
Ainda não sei estabelecer pormenorizadamente a relação entre neurodiversidade e a energia tricksteriana, mas sinto ela se formando pouco a pouco, como uma rede de ideias, imagens e sincronicidades. Ao escrever sobre o poema "Solidão", reflito sobre a inocência e a ingenuidade. E o trickster transita entre esses predicados cuja acepção designa virtude e tolice, respectivamente. Não à toa, os mitos relatam a vida dos tricksters desde o berço, dando relevância aos feitos precoces da infância. Aí, onde o senso comum deposita a crença na inocência, minha percepção neurodivergente sempre detectou a crueldade alheia e meu próprio vazio. Um vazio de estruturas, como um invertebrado que rasteja molemente pelo mundo. Para erguer-me, tive que erigir estruturas, uma ossatura ética, mimética e rígida, mas única, divergente. Na outra ponta desta interação dolorosa, conheci a crueldade e a malícia de quem parece já nascer estruturado para a absorção das convenções mundanas e, por isso, naturalmente, incorre em feitos cruéis e amorais que perpetuam o status quo, onde prevalece a lei do mais forte. Quando o trickster infante incorre em feitos amorais, ele o faz com graça e subversão. Ele não é amoral para se encaixar e pertencer; ele o é para se firmar na existência, de modo que seus feitos geram mudanças tão acidentais quanto definitivas e estruturais. Por isso, Lewis Hyde afirma que Hermes subverte o conceito de propriedade ao roubar o gado de Apolo e depois tornar-se seu guardião. E mais, ele ascende como legítimo ao Olimpo, mesmo sendo um bastardo de Zeus. E ainda protege sua mãe da ira de Hera. Tudo isso por meio do roubo, ainda bebê, e da supressão da fome. Sim, para Lewis Hyde, o trickster que Hermes representa — compêndio de inteligência, astúcia, criatividade e arauto da era da razão — só existe porque ele dominou a fome. Sua ascensão ao Olimpo, pela oferenda e inalação da fumaça destinada aos Deuses no sacrifício do gado de Apolo, demonstra o controle de seus instintos primitivos de satisfazer-se com a carne.
A Astúcia Feminina e o Chamado do Trickster
Há uma similitude na vivência da neurodiversidade e na ascensão olímpica do trickster. Com a diferença de que perdemos a graça do infante astucioso e nos tornamos “ingênuos” enquanto refreamos a fome para render louvor aos deuses do status quo, mascarando nossa inadequação. Como os tricksters, somos andróginos em nossa percepção de mundo. E o preço dessa compreensão de si como indivíduo, e não como designação de gênero socialmente construída, pesa mais quando se nasce em um corpo feminino. O infante astucioso nasce biologicamente masculino. Se biologicamente femininos os corpos, a astúcia se perverte em perfídia e precisa ser tolhida. Meninas precoces, como Ártemis, são ajudantes, como a própria que auxiliou no parto do irmão gêmeo Apolo. O status quo determina que meninas precoces sejam dóceis e peçam ao pai as graças que desejam, como Ártemis pede o arco e a virgindade. Pois sim, meninas precoces precisam aprender que não controlam o próprio corpo e a própria perícia e inteligência. Não podem amadurecer e criar, incorporando uma imagem de inocência infantil à astuta e selvagem caçadora.
Eu nasci em corpo feminino e o honro como organismo, sem compreendê-lo como integrante de uma célula social com regras implícitas de funcionamento. E para ser escritora e sobreviver, eu não posso ser Ártemis, pois nasci sob a égide do trickster e com as cores do louco. E já me foi dito que preciso incorporar essa energia arcana em minha empreitada literária. Como? O louco não olha onde pisa. Ele prepara sua trouxa e sai pelo mundo, colorido, risonho, distribuindo mudanças, transformando consciências e abalando estruturas que já deveriam ter ruído. E não é isso que faz um bom livro?
Referências:
HYDE, Lewis. A Astúcia Cria o Mundo: Trickster, Trapaça, Mito e Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017
JUNG, C.G. Quatro Arquétipos: Mãe, Renascimento, Espírito, Trickster. Petrópolis: Vozes, 2021




