Entendimento Visceral: Como a PL da Pedofilia Revela o Trauma Geracional e a Dor Materna
Um ensaio profundo que entrelaça o poema 'Entendimento' com autismo, trauma materno e a PL da Pedofilia. Explore a neurodivergência, a saúde psicossomática e o perdão na complexa relação mãe e filha.

Entendimento
Agora sei que precisas de mim
Que choras de tanto querer
que eu fique a teu lado enfim
Agora e já posso entender
Sei, porém, que é só querer
Talvez seja teu modo de amar
Ou deixaste o amor fenecer
E nada mais tenhas a dar
Saiba no entanto que preciso
Desse querer tão conciso
Desse jeito de amar complicado
Mas só direi o quanto te amo
Quando não for mai teu engando
E tenhas tua alma revelado
Este é um entendimento que é, paradoxalmente, cheio de dúvida. E, sendo um poema sobre a complexidade e as condições de um relacionamento, se tivesse sido exposto ao mundo antes, teria sido interpretado como um relacionamento romântico. Mas a pessoa a quem a adolescente que o escreveu pretende se entregar, sob a condição de que revele a alma, é sua mãe.
Duas questões convergiram para trazer este poema à tona: a assim chamada “PL da Pedofilia” e a notícia de que o câncer de minha mãe está em metástase, já tendo tomado a maior parte das vísceras. Seu tratamento agora é paliativo e ela pode viver alguns meses ou até anos. Tendo passado por gastrectomia e sendo teimosa em relação à sua alimentação, a desnutrição não contribui para uma sobrevida extensa. E, talvez, haja um terceiro dado nessa associação: minha endoscopia, trazendo sinais de inflamação gastrointestinal. Decorrente do refluxo, a hérnia de hiato de 15 anos atrás evoluiu para um quadro chamado esôfago de Barrett, com alterações alarmantes de tecido conjuntivo. Não há sinal de displasia — logo não é um estágio pré-câncer, e sim pré-pré-câncer — mas o fato da inflamação acometer esôfago, estômago e duodeno exige cuidado, e mais do que o fantasma do câncer, trouxe o fantasma da relação dolorosa com minha mãe.
E você deve estar pensando que perdi a mão, pois nada disso parece se relacionar com a “PL da Pedofilia”. Engano seu: minha mão está ativamente conectando os pontos no teclado. A conexão está na própria rigidez cognitiva de minha mãe.
Como uma mulher de 76 anos, ela estagnou em outro tempo, no qual meninas casavam, sim. E faltava o entendimento do que é a infância e da disparidade entre a formação do corpo e da psique, especialmente nas meninas que se tornam cobiçadas desde os primeiros sinais de mudanças hormonais. Para se ter ideia, ela, aos 18, casou “velha” para a época. E por isso mesmo, suas filhas, ainda na puberdade, começavam a se formar inimigas. O frescor de sua juventude era uma tentação para o homem da casa, seu marido. E numa evocação dos contos originais da Branca de Neve, ela mesma arrancava o coração das filhas. Chegou até a tentar com uma faca. De suas cinco filhas, 1 ela sacrificou aos treze; a “retardada” (possivelmente autista)ela sacrificou mais tarde, aos 15 ou 16; e eu fugi aos treze, não dando a ela o prazer de me caçar, mas sim a oportunidade perfeita para se vitimizar, o seu mais refinado mecanismo de controle em seu microcosmo.
Como escrevi em outras ocasiões, minha mãe tem traços autísticos mais evidentes do que os meus. Sua rigidez cognitiva e seletividade alimentar foram sem dúvida determinantes para o isolamento de nossa família. Mas o isolamento é também um traço narcísico. E ela nos controlava, jogando uns contra os outros. Sempre soube dar mais valor a quem melhor soube servir a sua necessidade de ser a rainha daquele lar espatifado. Não era o meu caso, que em busca de lógica e coerência, não sabia ler suas necessidades e me adaptar. Nunca soube servi-la, embora ela tenha sido, a maior parte de minha vida, a coisa mais importante e minha única referência de segurança. É paradoxal que ela representasse isso e, ao mesmo tempo, sua voz sempre furibunda me despertasse um profundo terror quando criança.
Entendimento, o poema, trouxe a compreensão de que minha mãe não pode ser perdoada ao ponto do perdão anular seus feitos. É isso que torna a costura destes três dados aqui concatenados relevante. E essa costura teve trilha sonora, usada para acessar e processar sentimentos que nem sabia sentir. Assim como os poemas, a música tem um coração sonoro pulsante. Funciona como um coração extra, cuja frequência das batidas se alinha com nosso próprio ritmo cardíaco errático e o organiza. E músicas caminham comigo desde a infância. E me levam por caminhos sinuosos, por vezes me remetem a memórias, por vezes a poemas. A chegada neste poema veio desde o processamento, mais de um ano atrasado, da violência doméstica e dos relacionamentos abusivos com a família. Na mesma vereda, fui parar no terreno da infância. “A Porta do Mundo” é uma profissão de fé em forma de canção e, como tal, me trouxe outra: “Bijuteria” na voz de Bruno e Marrone. Eu reconheci a música sem lembrar de já tê-la ouvido e passou a ser minha ecolalia musical. Depois de uma semana ouvindo e chorando como se tivesse tido esse amor que parecia uma joia rara, mas era bijuteria, um dia me deparei com a imagem de D. Maria, minha mãe, como interlocutora deste canto triste. Sempre que recebo notícias dela , digo mais ou menos a mesma coisa:
“Mas já me despedi dela. Já perdoei quando escrevi meu livro. Ela é também uma vítima. Assim como o pai é vítima de uma vida brutal, um pai brucutu e uma mulher “descompensada” e narcisista (porque nunca teve suporte). Ela não vai morrer, ela vai pra casa descansar, finalmente. Eu não penso em morrer e entendi que tenho um trabalho a fazer. Mas todo dia eu pergunto se, terminando, já posso ir pra casa. Melhor coisa é ir pra casa.”
Com a distância geográfica prestes a nos separar ainda mais, essa música me obrigou a confrontar a verdade dura, de um entendimento da neurodivergência que compartilhamos. E como diz a música: “Preciso te esquecer para me lembrar de mim” e seguir. Até porque cumprir meu propósito é o melhor jeito de honrar sua memória e a sua dor. Sua imensa dor. Indizível por meios de comunicação convencionais, mas marcada no corpo dilacerado, amputado, encolhido numa postura calcificada de medo, diminuído em busca por aceitação e segurança.
A relação entre o câncer de D. Maria e sua condição neurológica não identificada é tão significativa nesta costura porque é a evolução biológica do quadro que hoje me acomete. Sintomas gastrointestinais são considerados uma das comorbidades mais comuns no autismo, afetando de 70% dos indivíduos no espectro em algum momento da vida. Existe uma infinidade de livros sobre uma alimentação específica e restrita para autistas nível 2 e 3, e testemunhos apaixonados consolidando o eixo cérebro-intestino como uma via de tratamento e garantia de qualidade de vida para o autista. E para corroborar esse excesso de provas há o meu quadro, cujo desenvolvimento natural, sem o devido cuidado, é o câncer. O mesmo câncer de minha mãe.
E antes da ciência moderna apresentar estudos e disseminar artigos científicos, por vias pouco acessadas pelos médicos aparentemente, a Ayurveda já nos esclarecia com o Agni: o fogo digestivo. Para esta sabedoria antiga, a saúde mental e física depende do fogo digestivo, o que remete ao fogo alquímico da psicologia. Aparentemente tudo se transforma pelo fogo e a Ayurveda postula que devemos “digerir” tudo o que recebemos do mundo: alimentos, experiências, pensamentos e emoções. Logo, a conexão estômago-emoção é indissociável, e os ácidos estomacais fazem as vezes do fogo. E, ao não digerir o que recebe adequadamente, este ácido queima o organismo que o produz. A ansiedade funciona como um agitador natural dessa acidez. Na pandemia, quando a ansiedade galopava solta no espaço reduzido do confinamento, o seu tropel me fazia sentir até o ácido na boca. Tive que pesquisar e mudar hábitos e horários de alimentação para controlar um sintoma físico da ansiedade fervilhante.
E agora terei que rever outros hábitos, aprender a saborear o alimento da forma que a música me induz a saborear os sentimentos.
E preciso aprender e defender uma medicina holística, que vê um indivíduo completo e não suas partes; que vê a integralidade do sujeito e não toma a aparência tranquila como sinal de saúde interna. Na medicina tradicional chinesa, os órgãos nunca são vistos isoladamente; eles funcionam em pares e estão ligados a elementos e emoções específicas. E assim como a pele é esse imenso órgão no qual também se revela o sofrimento do autista na forma de alergias severas, o sistema neurológico permeia todo o corpo e conecta todo o organismo. Não deveria nunca ser visto como um fator isolado. Tampouco um problema gastrintestinal pode ser tratado sem considerar a neurologia diversa do autista. E um autista que rumina por necessidade, sem ter um rúmen – órgão próprio para isso –, sobrecarrega estômago e baço. E inflama as vísceras gradualmente, como um câncer em metástase. Não se pode exigir que um autista de processamento retardado e alexitimia deixe de ruminar. Isso é parte de sua programação. Ele precisa processar, e o faz muitas vezes em segundo plano e comumente à revelia. Daí que o suporte ao autista nível um de suporte é imprescindível também. E sim, a terapia é essencial, apesar da última psiquiatra ter debochado e chamado meu diagnóstico de “cortezinho que quando precisa é de dois pontinhos”. Aliás, essa metáfora dos “dois pontinhos” presume que haja cura. Com os pontinhos, o “cortezinho” cicatriza e muitas vezes sem deixar marcas. E TEA é uma condição neurológica que não tem cura e que deixa marcas indeléveis a cada crise.
Minha mãe é uma mulher inteligentíssima que não teve a oportunidade de desenvolver seu intelecto e se tornou assim uma agente do patriarcado, capaz de odiar uma mulher desde o mais profundo de seu ser, porque no fundo o corpo feminino representa sua prisão, seu confinamento. Uma pequena prisão que nem a biologia lhe concedeu, mas que o ambiente tratou de providenciar em sua coluna cifótica.
Eu não estar perto dela fisicamente, e para isso terei que começar a me desfazer de minhas vísceras, a começar pelo coração. Mas eu estou do lado dela. Jamais estarei contra ela. Não posso esquecer os seus crimes. Perdoá-los não significa esquecê-los. Mas talvez eu possa redimi-la de alguma forma, atenuando o sofrimento da menina autista que seria a próxima vítima.
Mulheres que defendem — ou propuseram — , a “PL d Pedofilia” tem medo de perder as supostas regalias da sujeição e odeiam quem não se sujeita para receber o pouco que recebem. Tem medo do novo, do desconhecido, da solidão. Por isso se amparam nas estruturas em ruínas de um velho mundo. No que depender de mim, demolirei essas ruínas de palavra em palavra até o fim dos meus dias.
Quanto à PL da Pedofilia, é uma vergonha sem tamanho, baseada em pensamentos retrógrados que consideram a mulher como uma propriedade e o corpo feminino algo de que o homem e a sociedade podem dispor como quiserem. Trata-se de uma barbárie buscando a guarida da lei, que supostamente serve à civilidade. E ela me horroriza. Lembremos sempre que contos de fadas como Branca de Neve, de acordo com a analista Junguiana Marie Louise Von Franz, são o espelho mais direto de nossa psique. E desde os primórdios da civilização eles nos alertam em variações de Branca de Neve, Pele de Asno e Barba Azul, que o ódio contra a mulher nasce do sentimento de posse e controle sobre o feminino.
Protejam as suas crianças. Cuidem bem das suas meninas.


