Emilia Flória e a vida breve
A Poesia como Força Motriz: Uma Jornada de Descoberta e Reinvenção
Dizem que a minha forma de expressão primeira foi o desenho, ou as garatujas, como é comum a todos. Mas para mim sempre foi a poesia. O poder das palavras e a sonoridade curativa de sua expressão vocal me cativou, primeiro pela música tocada no rádio a pilha que meu pai ouvia baixinho, de madrugada, antes de ir para a roça. Perceber essa conexão com a música sertaneja raiz destaca o fato dela reunir poesia e cultura popular em narrativas e sonoridades singulares e autodidatas, ditadas pelo povo, pelo contexto cultural e pela necessidade genuína de expressão humana. Meu primeiro poema escrito aos 9 anos foi abortado em sala de aula pelas palavras "Não é esse tipo de texto que pedi. E repete demais a palavra mãos". A professora não havia especificado e eu não fazia distinção. Texto é texto. Ou talvez o correto seja dizer "Expressão é expressão". Aos 14 anos, no entanto, não tive escolha. Escrever era imperativo para a sobrevivência. "Cala-te fera de minhas entranhas" era a ordem a ser instaurada verso após verso, e a ordem sendo desafiada verso após verso. A escrita era, em geral, rudimentar e pouco variegada, mas de tempos em tempos surgia um refinamento cultivado desde sempre pelo narrador interno. Em minha mente nunca houve silêncio, só a revisão sistemática da vida nesse palco de cenas simultâneas e falas sobrepostas. E que minha réplica nessa revisão, que possibilitava inventar pouco a pouco a minha voz, fosse rimada me era natural. De algum modo sempre soube estar em uma tragédia e em minha mente havia um coro de vozes buscando a coerência nesse espetáculo desconexo e barulhento. E vivi a tragédia maior que é aquela vivida anônima e silenciosamente, me esbatendo dentro de mim mesma, sob os trancos da retenção dos gritos e pela encolha involuntária diante das mãos espalmadas, prontas a esbofetear o primeiro pio. Até que, por não poder dizer, tive mesmo que escrever.
O papel sempre foi o suporte passivo de uma assertividade interior desencontrada do mundo e do aparelho vocal. E passivamente foi minha tecnologia assistiva, absorvendo “sal e hemoglobina, nódoas da fluidez escatológica nas suturas da menina”. Embora amante das letras me pressenti livre e me decidi filósofa depois de ler Joostein Gaarder. Não o mundo de Sofia, mas o de Emília Flória. O Codex Floriae tecia considerações da perspectiva de uma mulher que, supostamente, séculos atrás se colocava altiva diante das estruturas erigidas pelos homens, a maior parte delas em nome de um Deus que eu presumia inventado. E sua altivez não me parecia estar no corpo ou amparada na beleza cuja fugacidade ela mesma contesta ao questionar o desprezo por esta vida em função de outra que não temos a certeza de existir. Vita Brevis é uma carta de amor reflexiva e filosófica. É a grafia célere de um pensamento perspicaz e um coração terno, ainda que ferido. Há a mulher abandonada, preterida e despedaçada sendo reconstruída, palavra a palavra, por um encadeamento lógico e questionador. Se for verdadeiramente uma carta de Emilia Floria a Aurélio Agostinho, como deseja Gaarder, o Codex Floriae resume o pensamento filosófico e abre brechas nas confissões de um santo. E eu queria ser como essa mulher, fosse ela real ou inventada por Gaarder. Qualquer um que apontasse a hipocrisia das estruturas e os laivos da vaidade na busca por retidão e santidade teria meu aplauso. Mas Emília Flória, ao fazer isso com palavras, desenhou meu destino. Fez um Caligrama de minha vida, sempre em luta com a abstinência oriunda do embate entre a repulsa e o desejo pelo corpo feminino. E a alma como fica? Oh, esta é pérfida como a concupiscência despertada pelas formas sensuais. Emília Flória atentou para a oposição abstinência e verdade. A verdade frui; a verdade não se nega ao prazer, não se refestela na dor e na privação. Sobretudo não descuida do corpo. E jamais veda o espírito em uma doutrina. Por isso mesmo temia que a formação em letras me encarcerasse em caixas, moldes e déficits. Escrever, para mim, requeria um pensamento livre, e versado em temas mais amplos do que sintaxe e morfologia linguística. Não que a flor do lácio não me aturdisse com a concupiscência de uma voluptuosa concubina encarnando a tentação na vida de um candidato à santo. Porém, a sensualidade de nosso amor é algo espiritual, transcende a carne. É um amor que liberta e ensina sem uma doutrina. E assim, eu, uma candidata a filósofa me descobri arrefecendo. A filosofia dos homens estava minando meu espírito. E eu, candidata a filósofa, me descobri artista visual, obcecada pelas imagens, que pediam poesia. Sem Emília Flória não acharia esse caminho de compreensão da poesia como minha força motriz. E da escrita como a tecnologia para realizar a magia da reinvenção. Cecília, outra grande mulher- e esta com certeza real- já declarou que “A vida só é possível reinventada”. E me reinventei como artista até chegar ao cinema, esperando encontrar o meu lugar no mundo, só para redescobrir esse lugar em mim.
Sou poeta em essência, mas contadora de histórias que de outro modo permaneceriam silenciadas. E devo tudo à poesia. Minha vida, minha sanidade, minha educação. Versos são mantras, conjurações, esconjuros; são exercícios filosóficos de crítica do mundo e de autoconhecimento; exorcismos praticados por céticos que creem na dança das moléculas. E dancei mesmo em congelamento funcional. E reinventei a vida inventando amores e mundos. E depois de semanas postando poemas nos quais o corpo é lacerado por palavras tão incisivas quanto as dores invisíveis que o sujeitam, Emília Flória surge como um Bálsamo curativo. Sua ousadia de contrapor abstinência e verdade como quem apresenta a um faquir uma mesa farta só para desmascarar sua miséria interior, nos mostra que a vida é aqui fora, no corpo que é nosso templo, nos sentidos que desvelam atmosferas e paisagens. Tratemo-lo com amor. Que nosso corpo descanse no amor. Que aceite merecer o amor. E quando ele se contrair nos velhos hábitos que haja uma Emília Flória para dizer :
Supõe que não existe um Deus que negocie com as nossas pobres almas! Imagina que um Deus carinhoso criou o mundo para que vivamos aqui. Se estivesses estendido debaixo de uma figueira, Aurélio, com um dos seus frutos na mão, beijar-te-ia a testa fatigada. Então aproveitaria para destruir essa palavra abominável e incômoda Abstinência que não para de sobrecarregar o teu espírito. Um abraço meu seria capaz de salvar-te. (Gaarder, 1997)
Samara. Oléo sobre tela, 2018. Obra da autora, Oryanna Borges
Bibliografia:
GAARDER, Jostein. Vita Brevis. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Reinvenção - Cecília Meireles. Disponível em: https://nova-acropole.org.br/blog/reinvencao-cecilia-meireles/. Acesso em: 16 de fevereiro de 2025.



