Ecos Sinto-me às vezes sombria Transformo as dores em asas E os ecos da noite em caças E brinco na noite tenaz e fria Me torno também uma sombra Vislumbro das alturas os tetos Admiro do submundo os restos Nenhuma lágrima me assombra Não há dor expressa nos escombros Não há dor impressa nos tombos A nada cede minha particular paz A paz da alma esgotada de sonhar A paz da Alma esgotada de sangrar Viver apenas já não me satisfaz
As Duas Faces da Dissociação: A Sombra e a Máscara
O poema “Ecos” é uma descrição de um mecanismo de defesa psíquica. Ele narra a jornada de uma consciência que, para não se fragmentar pela dor, induz um estado alterado onde se desconecta das emoções. Às vezes, isso significa entregar o controle à máscara, mas neste poema específico é fundir-se com a sombra. Esta distinção é crucial, pois a experiência dissociativa no autismo, em minha percepção, ocorre de duas formas principais. A primeira é um estado de fuga e torpor, como o retratado no poema: uma retirada deliberada do burburinho externo para um mergulho completo no murmúrio infinito da mente, onde ocorrem a ruminação e o processamento contínuo. A segunda é uma dissociação reativa, que acontece durante a sobrecarga sensorial das performances cotidianas. É nesta segunda forma que a máscara pode operar de forma quase autônoma, resultando em lapsos de memória, pois a energia do corpo se concentra em executar tarefas automáticas em vez de registrar interações ou a passagem do tempo.
Confesso que tinha vergonha de mostrar estes poemas dos primórdios e expor essa dor. E, mais do que isso, essa dor em uma caracterização genérica e tosca. Talvez o fato de este poema ter sido escrito em uma época na qual os quadrinhos eram meu ponto de fuga contumaz e, de algum modo, sempre me vi como um personagem atormentado, abraçando a própria sombra monstruosa, um Batman ou algum anti-herói que se regozija em escandalizar com seu lado sombrio e liminar. Reler esses poemas décadas depois é ouvir outros ecos, para muito além do medo de ser malvista por meio dessas palavras que dão asas, uma alegoria retomada algumas vezes em minha escrita.
O Anti-herói como Espelho: Batman, Contos de Fadas e a Fuga para Dentro
Fênix é o poema que me lembro de imediato que traz esse padrão expressivo. Escrito em 2008, ele também evoca visualmente o arquétipo da sombra. A terceira estrofe do poema, por sua vez, remete a uma iconografia contemporânea da sombra interna se expressando fisicamente, a começar pelas mãos.
Tenho unhas negras
de entalhar sonhos no carvão
Reminiscência e custo
de saber renascer da cinza
Essa é uma estética explorada em uma das versões cinematográficas mais incompreendidas e menosprezadas de um conto de fadas: Maria e João: O Conto das Bruxas, de 2020 (dir. Oz Perkins). Mais próximo do terror do que do imaginário infantil, o filme se aproxima visualmente da estética dos quadrinhos do Cavaleiro das Trevas. Como Bruce Wayne abraça seu medo e o transforma em seu alter ego — uma sombra maligna capaz de assustar o próprio mal —, a Maria desta versão aceita o poder sombrio da bruxa que a aprisionara em uma ilusão de fartura e tranquilidade, às custas de vidas inocentes. Estar ciente do mal que a envolve já é, de certo modo, aceitar um poder sombrio. Fruir desse poder sombrio e fazer dele uma arma para lutar contra o mal que o originou é, talvez, o traço mais patológico de Bruce Wayne. E o de Maria. E talvez seja o meu.
Sem poder prever o surgimento desta versão de João e Maria mais de duas décadas depois, ou a escrita do poema cuja estrofe consolidaria o poder de tramar asas imaginárias com palavras e sons, quase duas décadas depois, eu, neste poema, ouvia um eco do meu corpo exausto. Estava distante, em algum lugar entre a fantasia e a completa ausência, onde encontrava refúgio, o casulo protetor que teceria formalmente para minhas personagens Helena e Luna.
Como a Maria do filme, eu sentia como se carregasse muito peso nas costas, sem nem sequer saber nomeá-lo como a “ ausência de proteção materna", “instinto predatório masculino", “ costura inábil de olhar divergente". Tentava montar o imenso e desordenado quebra-cabeças do mundo. Fugitiva como Maria e traumatizada com visões tenebrosas de uma queda vertiginosa, como Bruce, eu tomava para mim o dever de proteger outros inocentes. Considerava minha inocência perdida há muito tempo. E talvez como Maria parece compreender a inocência quando, em uma entrevista de emprego, seu interlocutor arrogante lhe pergunta se ela é “intacta”, o horror não está em falar de seu corpo e intimidade com um estranho que busca se assenhorar de sua voz, mas que haja gente no mundo como ele e em posição de fazer essa pergunta a uma adolescente. Enquanto a androginia da atriz Sophia Lillis empresta mais uma camada de horror à presteza masculina em se apropriar de meninas púberes e se aproveitar de sua fragilidade física e social, meu olhar encovado em olheiras profundas parecia testemunhar que eu só via sombras no mundo. Maria foge do destino que esta posição servil lhe acarretaria, mas leva consigo a carga de salvar a inocência do irmão, a quem materna mais do que sua própria mãe se mostra capaz. O corpo de Maria não importa, mas sua alma não é mais intacta. Foi tocada pela sombra. Primeiro a do mundo e depois a sua própria. Está perdida justamente por saber demais e não ter maturidade para encaixar esses saberes na sua leitura de mundo. Do mesmo modo, meus cacos de realidade desvelavam um padrão opressivo que não se encaixava em minha ideia de mundo e que não permitia que eu também me encaixasse nele.
A Sombra como Poder e como Defesa Psíquica
E não havia para onde escapar a não ser para dentro, através de um estado alterado de consciência. Este estado, creio, é o que o poema expressa, caracterizado pela dissociação (uma desconexão da realidade imediata e das emoções) e por uma fusão deliberada com a Sombra arquetípica. A mesma Sombra que Maria abraça amorosamente ao fim do filme. Ela sabe que, ao ocupar o lugar da bruxa, assume seus poderes e que esses poderes têm potencial de ser luz ou escuridão. O poder em si é uma energia neutra, e ela parece fazer boas escolhas. Nós, viventes, de fora da segurança ficcional, não entendemos a sombra como poder, e muito menos como neutra. A nossa sombra, de acordo com a psicologia, é um repositório de dejetos gerados pelo processo civilizatório. A civilidade — a educação para as normas do mundo — não extirpa de nós apenas a natureza rudimentar; ela extirpa forças e potenciais.
O sentimento de ser “sombria” devo a esse processo civilizatório. Não que eu seja ou fosse selvagem; era apenas questionadora. Adequar-se pode ser algo violento, como cortar os próprios pés para caber em um sapato impróprio. Contudo, a dor desse processo, quando não interpretamos de pronto os signos do mundo, é psíquica. A “transformação das dores em asas” não é uma superação positiva, mas sim o ato de usar a dor como combustível para entrar em um estado dissociativo. As “asas” simbolizam o desprendimento do corpo e da dor imediata. Talvez dissociar tenha sido, inicialmente, apenas essa defesa psíquica alçada gradualmente ao patamar de um fenômeno racional, no qual o eu se eleva acima do próprio sofrimento para poder observá-lo sem senti-lo.
Nosso inconsciente é como uma noite escura, e a sombra se esgueira por ela. A noite real, que sucede o dia, era ainda, nesse tempo, o repositório das poucas horas de repouso e silêncio externo. Resvalar do corpo exausto para a noite inconsciente era necessário para o mínimo descanso, pois dentro dele havia o eco da sombra, o murmúrio incessante daquela parte da psique onde residem os instintos, os desejos reprimidos, a agressividade e tudo aquilo que nossa persona consciente foi treinada a rejeitar. Sem a dissociação não haveria descanso, pois esse murmúrio incessante me consumiria. A dissociação me levou a não temê-la. Já em estado dissociado, sendo o eu lírico que vê tudo de longe, apropriei-me dela. Transformar os aspectos assustadores da sombra em ferramentas de poder e “brincar” nessa noite interior é uma descrição precisa de quem explora seu próprio inconsciente sem o peso da culpa ou do medo. Este, um privilégio concedido pelo distanciamento emocional da dissociação.
A Fusão, o Custo e a Alquimia da Escrita
A poesia faz desvanecer a separação entre o “eu” (a persona) e a Sombra. O eu lírico abandona sua máscara social e se identifica completamente com seu lado reprimido. Esta fusão é uma fonte de poder e invulnerabilidade. Só a fusão pode cessar o murmúrio incessante de uma mente que nunca para. No estado dissociativo, a conexão com os sentimentos é cortada. A dor existe em um nível cognitivo, mas seu impacto emocional é neutralizado. A dissociação funciona como um disjuntor neurológico, evitando o colapso total. Nada mais fere e, enquanto a chave do disjuntor estiver desligada, há a contemplação pacífica da escuridão, seja ela interna ou externa. A paz experimentada, contudo, é a paz do vácuo emocional. É uma paz “particular” porque não vem da harmonia, mas da ausência; não é serenidade, é dormência. É a tranquilidade de quem está protegido do sofrimento por um escudo psíquico.
A dissociação e a fusão com a Sombra não foram uma escolha livre, mas um último recurso de uma “alma esgotada” de tentar se adequar e de se ferir no processo. O custo, no entanto, é altíssimo. Há uma epifania trágica no último verso: se proteger da dor é também se proteger da vida. E aqui as duas faces da dissociação se encontram: enquanto o poema “Ecos” descreve o mergulho na Sombra, essa mesma dormência tem sua contraparte na vida cotidiana, na dissociação reativa que permite que a máscara pilote o corpo durante as sobrecargas. Ambas as estratégias, embora diferentes, levam a uma memória fragmentada e a uma mesma conclusão: “Viver apenas” é sobreviver sem sentir-se vivo.
E é onde, talvez, a escrita opere sua mágica de criar sentidos e, ao fazê-lo, criar asas para transpor abismos. Como Maria, ao escrever “Ecos” eu não tinha muito a oferecer, e mesmo assim muito me era tirado. Quando escrevi Fênix, no entanto, a escrita já havia consolidado seu poder alquímico e eis o que o eu lírico tem a oferecer ao seu interlocutor:
E ainda assim te emprestaria
meus olhos de fixar vertigens
e partilharia o mistério
que transforma
uma sequência de palavras
na conjuração das asas
para transpor abismos.



