"Divindade": O Ato de Transvaloração do Sofrimento no Niilismo Autista
O peso do Niilismo Autista (Nível 1) e o alto risco de desviver são confrontados pelo poema "Dinvindade". Uma análise que liga o esgotamento (burnout) à Transvaloração nietzschiana como ato de criação

Divindade
Lamento aqueles que morrem cedo
Mais ainda os que desejam morrer
Morrer para silenciar e esquecer
Penetrar furtivamente no frio segredo
Aqueles que tocaram o mais alto do infinito
E caíram do pedestal do sonho na angústia
Aqueles que fazem da dor o grito de rebeldia
E não aguentam o peso do próprio espírito
Eu, do âmago da minha humanidade
Lhes concedo a condiçãode anjos
Embora sem asas e de olhares sujos
Eles carreagam na carne a suprema divindade
De quem conheceu o céu e mergulhou no inferno
De quem provou o mel e se banhou no veneno

“Divindade”: A Sacralização do Esgotamento Existencial
A primeira vez que eu pensei em desviver tinha cerca de 10 anos. Entrei no banheiro e tentei cortar os pulsos com as giletes cegas do barbeador de meu pai. Esse poema foi escrito na década seguinte, mais especificamente entre os 14 e os 20 anos. E sua existência nessa segunda década de vida significa que a morte sempre foi uma possibilidade muito presente. Eu não sinto um grande apego à vida. Hoje meu maior vínculo mundano é a responsabilidade que assumi com a minha gatazana cinzenta. Nossos destinos estão ligados. Fora isso, tenho meus projetos de livros, estudo e pesquisa. Não sinto saudade. Quem ficou para trás não ocupa meus pensamentos com desejos de retorno, apenas lampejos de melancolia em momentos muito pontuais. Sinto-me estranhamente leve.
A morte é agora ainda mais presente. A madureza traz consigo essa certeza de finitude e a incerteza do instante da cessação definitiva. Tento fazer amizade com ela. Conversamos nessa língua que prescinde de palavras. Sussurro para ela minhas parcas esperanças de voltar para casa. Ela não responde, alimentando esse temor incisivo de que não há nada. Mas é certo que um dia penetrarei furtivamente no frio segredo.
Talvez o poema “Divindade” tenha nascido de um desses diálogos, quando eu ainda não era fluente nessa linguagem. E por isso a estrutura solene do soneto (dois quartetos e dois tercetos) e a métrica livre tecem uma reflexão sobre o sofrimento levado ao seu limite. Lembro de escrevê-lo, mas não precisamente quando, e se fruto de uma confrontação intensa com a ideação de “desviver” – uma realidade estatística dolorosa para a comunidade autista Nível 1 de Suporte. Sei que o poema, assim como Eros e Tânatos faria mais tarde, vence a morte e transcende a dor individual para postular uma nova categoria de dignidade para o sofredor. Este ato de postular uma nova dignidade é, em termos nietzschianos, uma manifestação do Niilismo Ativo, uma recusa em sucumbir ao Niilismo Passivo (a resignação diante da ausência de valor).
O Peso Insustentável do Espírito (O Esgotamento Autista)
Os dois primeiros quartetos funcionam como o diagnóstico da angústia. Este desejo, “silenciar e esquecer ressoa com o custo da camuflagem (masking) e da sobrecarga sensorial e social que define a experiência do autista Nível 1 de Suporte.
Já o verso “E não aguentam o peso do próprio espírito” é o ponto de convergência entre a arte e a ciência. A neurociência aponta que o esforço exaustivo de mascarar os traços autistas consome uma quantidade desproporcional de recursos mentais, levando ao esgotamento autista (burnout) e à depressão. O que o poema descreve como peso espiritual, a pesquisa (como a de Simon Cassidy (2018)) quantifica como um fator de risco primário que coloca autistas com alta funcionalidade cognitiva em um risco de suicídio desproporcionalmente alto. O poema é, portanto, a voz lírica do esgotamento que a estatística tenta capturar.
A Queda do Pedestal e a Rebeldia
A descrição daqueles que “tocaram o mais alto do infinito / E caíram do pedestal do sonho na angústia” é o relato da disforia da neurodivergência. É a frustração de possuir um potencial intelectual ou uma sensibilidade profunda (“o infinito”), mas ser constantemente derrubado pelas barreiras sociais, sensoriais e de comunicação do mundo neurotípico. A dor se manifesta como “grito de rebeldia”: a recusa em aceitar a injustiça desse fardo existencial.
A Transvaloração e a Divindade em Contraste
O cerne do poema reside nos tercetos, onde o eu lírico assume o papel de concedente, transpondo o sofrimento para o reino do sagrado.
O conceito de “Dinvindade” é uma profunda Transvaloração de Todos os Valores (ecoando o pensamento nietzschiano). A divindade não é concedida apesar do sofrimento, mas por causa dele. A elevação à “condição de anjos” é imediatamente qualificada pela imperfeição: “embora sem asas e de olhares sujos”.
A suprema divindade é carregada “na carne”, confirmando que a santidade está na experiência encarnada da totalidade da vida, expressa nas antíteses finais: “céu e inferno” e “mel e veneno”.
Essa dualidade extrema é a própria essência da neurodivergência: a capacidade de experimentar o “mel” (alegria, hiperfoco, profunda empatia) e o “veneno” (sobrecarga sensorial, burnout debilitante). O autista que vive esses extremos não é quebrado; ele se torna divino (na definição de divindade do poema) por ter resistido e abraçado a complexidade de uma existência de alto risco e de alta intensidade. É um ser em constante autocriação.
Em conclusão, “Divindade” é um hino à sobrevivência e à dignidade. Ele transforma o índice estatístico de ideação suicida em uma meditação poética sobre a força intrínseca daqueles que, mesmo sem apego à vida, seguem adiante, presos à responsabilidade ou à simples afirmação da experiência – mesmo quando essa experiência é um campo de batalha constante. O poema valida a experiência marginalizada, concedendo-lhe uma coroa de sacralidade forjada na angústia.
Se existe um anjo azul, este poema o descreve: sem asas, de olhar sujo e cansado, contemplando a própria e certa finitude e buscando sentido na experiência de uma existência feroz. E não sou eu dizendo isso; é uma menina muito jovem que não havia lido Nietzsche (2011) , mas precisava ressignificar os valores do mundo. Essa necessidade intuitiva de ressignificação é o próprio motor da Vontade de Poder (agindo, transformando o sofrimento em fonte de criação e valor.
CASSIDY, S. [e outros]. Risk markers for suicidality in autistic adults. Molecular Autism, [S. l.], v. 9, n. 1, Artigo 1, 31 jul. 2018. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6069847/. Acesso em: 18 nov. 2025.
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. São Paulo: Contraponto, 2011.


