De ‘Confissão’ a ‘Ao Maior Tolo do Mundo’: A Alquimia da Dor em Soberania Poética
Uma jornada emocional e artística através de dois poemas centrais, "Confissão" e "Ao Maior Tolo Do Mundo. O poema "Confissão" abre o relato como um bisturi lírico, curto e preciso.

Confissão
Hoje matei um irmão
Meu corpo travou-se gélido
Meu rosto tornou-se pálido
E dilacerado meu coração
Foi num momento de lucidez
Ele dava-me as costas
E esperanças decompostas
O afogaram na morbidez
Então desocupei seu lugar
O limpou um pranto breve
E senti minha alma tão leve
Que não evitei de gostar
Assim, porque eu o amava
E ele nunca me amaria
E pela sua enorme covardia
Ele há muito me matava
Prelúdio de um Acerto de Contas
No dia 30 de setembro de 2025, estive na que suponho ser a última audiência de um processo de cobrança. O valor resultante dessa cobrança é irrisório perto do bem que me foi tirado e, sobretudo, da paz de espírito que me foi roubada.
Este processo deve encerrar todo o enredo de abandono familiar e violência judicial que funciona como fio condutor de TEA Menina. E se a sentença for positiva, como tudo leva a crer, o que terei não será o ressarcimento monetário, nem pelos danos morais. Nada paga o sofrimento que enfrentei, e o devedor pode nunca pagar a dívida, mesmo tendo perdido o processo cível. Mas terei algo que não tem preço: uma confirmação legal de que eu estava certa. Ela não repara os danos e certamente será refutada pelos que escolhem acreditar no que convém, e não na verdade, mas para mim será esse princípio de reparação, que remenda mais a minha alma do que um corpus social acometido de cegueira seletiva.
Anatomia de um Rompimento Poético
Horas antes da audiência, lembrei-me de “Confissão”, escrito muito antes de o perpetrador — e, neste caso, réu — cometer o maior dos seus abusos. Ainda assim, o poema descreve o processo doloroso, mas necessário, de identificar e erradicar uma parte de mim que se tornou um fardo: a ideia de que ele era meu irmão de sangue e que nosso laço fraterno implicava um vínculo afetivo indissolúvel. Mas isso se diluiu em um pranto depurativo, em um momento de lucidez. Eu tinha cerca de 20 anos quando esse momento foi descrito em versos.
A obra retrata com maestria a complexidade de uma transformação interna que escrutina a dor, o luto, e usa uma imagética violenta para matar em si o que não apresenta mais sentido. A lucidez evoca a razão que analisa o caso, proclama a sentença e a executa. Esse juiz interno, implacável e multitarefa, traz o reconhecimento de que, às vezes, para nos salvarmos, precisamos matar os fantasmas que amamos e que habitam dentro de nós. E a ideia do amor pode ser só isso mesmo: um fantasma que nos assombra até que possamos matá-lo. Na mitologia da série Supernatural, os fantasmas são “mortos” quando seus ossos ou partes remanescentes de seu corpo material são destruídos pelo fogo, cortando o vínculo com este plano. Mas os fantasmas do amor que sonhamos merecer são mais complexos.
A Chave da Neurodivergência
Ainda que “Confissão” seja um ato de autopreservação radical, aparentemente rompendo com o ciclo de abuso e com a ideia de família que o irmão representava, isso muda quando se considera a perspectiva de uma jovem autista. Se a neurodivergência é a chave para decodificar a intensidade e a lógica por trás de cada verso, ela também possibilita compreender a reincidência no ciclo de abuso, que levaria, cerca de uma década depois, à violência patrimonial que gerou o atual processo.
É muito comum que vítimas de abuso, especialmente o psicológico, tenham dificuldades de encerrar o ciclo de vez. No caso de mulheres neurodivergentes, isso se torna ainda mais difícil, pois entra na equação aquele conceito complexo de ingenuidade autística que já deslindei por aqui, as fragilidades do burnout, do shutdown, da disfunção executiva e o anseio desesperado que nutrimos todos por aceitação.
Memórias e Fragmentos do Caos Familiar
O poema me trouxe questionamentos sobre a linha temporal traçada para esta retrospectiva pelos poemas da adolescência, pois ele compõe Retratos das Sombras, cujo registro foi realizado em 30 de junho de 1999. Ou talvez não. Talvez eu tenha estendido um período extremamente intenso da minha vida, que não durou mais do que um ano e meio, que foi a temporada dividindo uma casa com duas de minhas irmãs, sendo engolida pelo Caos Familiar e descartada com um aluguel correspondente a 90% do meu salário, dívidas homéricas de telefone em uma época em que este era um serviço de luxo, e ainda como a vilã da situação. Inocente nunca fui, mas o irmão em questão parece ter visto a minha parte na história e insinuou uma acolhida. Mas era para inglês ver. Quando aceitei seu suporte, ele também me descartou.
De certo modo, “Confissão” não é só sobre ele. A figura do irmão converge toda a família. Assim como a sentença do processo de cobrança testemunha a minha verdade para todos eles, embora apenas ele figure como parte.
A Dor Sísmica de Amputar a Esperança
A escolha do verbo “matar” é violenta, sim, mas reflete a magnitude do trauma de romper um laço primário e, ao mesmo tempo, de reviver, para isso, traumas passados que remontam à mais tenra infância. Para uma pessoa autista, com um forte apego a estruturas e conceitos (como “família” e “irmão”) — especialmente por representarem uma tábua de salvação no caos de um núcleo familiar disfuncional —, destruir esse pilar fundamental é um ato sísmico. A reação física descrita no poema revela esse hábito cartográfico peculiar para decifrar as emoções nem sempre compreendidas e entender o luto pela figura idealizada que nunca existiu e pela dolorosa aceitação de sua realidade. É a dor de amputar a própria esperança.
Quando afirmei em outras ocasiões haver detectado uma enorme capacidade de compartimentalização em meu funcionamento, é por causa de poemas como este, no qual evidentemente o processamento lógico e a percepção aguçada da realidade superaram a máscara social e a expectativa emocional de ter um relacionamento fraterno. É a conclusão irrefutável de uma análise de dados de uma vida inteira de abuso.
Lógica e Lucidez Como Ferramentas de Sobrevivência
Refletindo hoje, “Ele dava-me as costas” abarca o núcleo familiar completo, e o irmão se torna o catalisador de um processo que provavelmente já vinha ocorrendo em segundo plano. Ele foi a famosa gota d’água e a metaforização de uma vida de rejeição e bullying. Eu lembro da chamada telefônica, de pendurar o telefone no gancho do orelhão e mergulhar nessas águas mórbidas nas quais afogaria as esperanças de ser parte da família. Por um tempo, senti-me livre. Esperanças podem ser pesadas de carregar e atrasar o passo. Só retirando a energia mental encaminhada para essas expectativas familiares eu pude cuidar de mim novamente. E sim, usei as poucas ferramentas que tinha — a lógica aguçada, a percepção intensa e um profundo senso de justiça — para diagnosticar uma situação intolerável e realizar a “cirurgia” necessária para sobreviver.
O poema não é sobre vingança, mas sobre soberania pessoal. É a declaração de independência de uma mente que, em um “momento de lucidez”, escolheu a própria vida em detrimento de um laço de sangue que a matava lentamente. Contudo, a libertação não foi completa. Os fantasmas do amor que desejamos não têm ossos e deixam remanescentes que os revivem ao primeiro sopro de esperança. Isso exigiria uma nova ritualística poética para exorcizar a dor. Pois sim, nesse estágio, os fantasmas trazem de imediato a dor.
Ao Maior Tolo Do Mundo
Tem coisa que só faz sentido na minha língua.
Já lhe coloquei pra fora do juízo
ao relento da ignorância
pra morrer à mingua,
mas você não morre
Polui a vista
se arrasta de volta, de porre,
fedendo à soberba e arrotando
cachaça. Se estica, se alastra pros lados,
arregaça a estética com um golpe
de barriga e desnorteia a platéia
seleta com seu talento para intriga.
Você não dorme, desmaia entorpecido.
Por isso nunca acorda. Sua percepção
não alcança a borda do limbo, construto
da sua falácia. E caminha estulto,
de torpor em torpor. Não há eficácia
em afirmar que lhe falta amor ou
essa alegoria a que se usa chamar
coração. Porquê você tem tudo.
Sempre teve tudo. Menos vergonha.
Vergonha eu que sinto. Porquê
a única vez que já quis ter um pinto
foi pra lhe encher de porrada sem
o fantasma da histeria, sem perder
a razão pra porra dos genitais.
Enfim, acho que entendi a ironia
do universo.
Que você sempre tenha tudo
para que eu sempre seja mais,
veja mais e reconheça de longe
um cínico que não honra os culhões.
Tá ouvindo esse batuque de tambor?
É o meu verso contemplando
vastidões. Tá ouvindo? Ossos, frascos,
vultos varando o véu?
É o meu eu satírico rindo por último,
aos chacoalhões. 
O Manifesto da Soberania
Se “Confissão” foi o ato cirúrgico e doloroso de cortar um laço para sobreviver, “Ao Maior Tolo Do Mundo” reivindica soberania e integridade ao descortinar construtos sociais e um propósito maior. O irmão é de novo o protagonista, mas, avaliando os dois poemas juntos, ele incorpora novamente o abuso e o abandono coletivo desse núcleo familiar disfuncional. Ele é a mão articulada por um corpo familiar corrompido.
Este poema foi escrito quando o irmão me mandou um recado: pagaria o que me devia quando eu pedisse com humildade. Pedir com humildade seria o menor dos sofrimentos infligidos, que incluíram ficar literalmente na rua, sem dinheiro para um ônibus; ver minha Teodora morrer (minha cachorra) por falta de recursos e de caridade; ter a posse do apartamento reintegrada e ser despejada novamente na rua; ser ré, mesmo sendo a vítima, e nunca ter o crime de estelionato reconhecido ou tratado pela justiça, que mais me prejudicou do que ajudou. Ainda assim, este poema é uma declaração de poder, um manifesto de desprezo e uma celebração da própria expansão intelectual e espiritual. Não se trata mais da dor do rompimento, mas da observação distante e satírica de que ele poderia me impedir de ter, mas nunca de ser.
A Poesia Como Território e Arma
A soberania começa pelo espaço escolhido para a contenda satírica: a poesia. Esta é a minha língua primeira. Quando as crianças faziam garatujas, eu acordava às 5h30 da manhã para ouvir o rádio a pilha que meu pai ligava baixinho. As histórias de bois, vaqueiros e amores da música caipira exerciam um fascínio impressionante sobre mim. E elas me ensinaram, talvez, a sonoridade curativa e a justiça poética, que tarda, mas vem.
A morte psíquica de “Confissão” não perdurou; meu repertório de imagens grotescas, sim. Se havia alguma dúvida sobre a morte simbólica de “Confissão”, ela é dirimida em “Ao maior tolo do mundo”. Deixar a imagem do irmão — essa metáfora do amor familiar nunca fruído — ao relento da ideia esclarece enquanto escarnece. Não há mais conexão direta com a dor da traição e do abandono, mas repulsa. A idealização da juventude foi completamente substituída por uma clareza brutal que cataloga a decadência física e moral. Infelizmente, essa repulsa não se estenderia ao todo, apenas ao seu avatar. O corpo familiar corrompido que o articulava ainda permaneceu de pé, pronto para me puxar para o caos novamente no futuro.
Crítica ao Privilégio e a Vulnerabilidade Amplificada
A autora, que desvela a mediocridade privilegiada pelo gênero enquanto construção social, ainda não sabe que, transcorridos mais ou menos 15 anos, ele será novamente o catalisador da lucidez que compartimentaliza e separa as emoções para decantá-las de suas impurezas e, por fim, diluí-las em pranto para dar lugar a uma ação de sobrevivência, esta sim, a estocada magistral. Sobreviver ainda é minha vingança.
Fato é que o poema rejeita a psicologia popular (”falta de amor”) e aponta para a verdadeira raiz do problema: o privilégio absoluto. “Você tem tudo. Sempre teve tudo.” A única coisa que lhe falta não é algo que o vitimize, mas algo que o humanizaria: a vergonha. Isto move a análise do campo pessoal para uma crítica social da mediocridade masculina, arrogante e impune. E, mais uma vez, reforça a vulnerabilidade das mulheres nesse sistema e atenta para o fato de que mulheres neurodivergentes são ainda mais vulneráveis. Mas também podemos ser mais propensas a nos libertar, visto que a luta interna entre o eu e a máscara social nos coloca em um estado pleno de individuação constante e frenética.
Ainda lembro, como se fosse há dois segundos, a raiva crua ao escrever o poema e destrinchar minha vulnerabilidade física e social para expressá-la. Mas, escrevendo, enquanto desejava a licença social masculina para a violência, pude transcendê-la e transformá-la em uma crítica feminista pertinente. No espaço poético e na minha língua, pude legitimar a fúria sem exercê-la e amplificar seu poder para além da fisicalidade. Pude gritar essa frustração de uma mulher cuja razão e raiva são sistematicamente postas em dúvida.
A Virada Epifânica: A Ironia do Universo
A escrita sempre me leva a um ponto de transmutação. A raiva dá lugar a uma compreensão refinada, quase filosófica. E “Ao maior tolo do mundo” ressignifica o “irmão” de fonte de dor para catalisador do crescimento. A contínua existência medíocre e privilegiada dele serve como um pano de fundo escuro, diante do qual ainda é possível brilhar. Às vezes, me espanto com minha própria fome de viver. Poderia dizer que ele me ensinou a “reconhecer de longe” a falsidade e a covardia. E a transformar trauma em sabedoria e abuso em superpoder de percepção. Todavia, quem me deu isso foi a escrita, e não ele. Escrever me trouxe a vitória definitiva de tornar o agressor uma ferramenta para minha própria expansão espiritual.
O Triunfo Final: A Vastidão da Alma Artística
A aliteração constrói um final apoteótico, repleto de imagens místicas e do som dos versos e risos satíricos. Muitas vezes, refreei essa verve, temendo meu talento para o escárnio e a demolição moral do outro. Mas não desta vez. A menina que chorou um “pranto breve” em “Confissão” deu lugar a uma mulher que sabe que vai rir por último, nem que seja por meio do escarnecimento poético.
A jornada de uma década entre os dois poemas é a da alquimia da alma. “Confissão” foi sobre separar-se para não morrer. “Ao Maior Tolo Do Mundo” é sobre usar a matéria morta daquele relacionamento para fertilizar um universo próprio, construído palavra por palavra.


