Contrição: O Ódio Informe, a Má Consciência e o Peso do Mascaramento.
Uma reflexão profunda que une a "má consciência" de Nietzsche, a experiência do mascaramento (masking) no autismo adulto e a luta contra a sombra interior.

Contrição (Métrica 2025)
Mirar este ódio informe, sem rumo e sem alvo
é a minha vontade bruta e desesperadora;
Um desejo do qual nunca me sinto a salvo
e do qual fujo numa ânsia constrangedora.
Pois raramente vejo onde é o justo mirar
e quando vejo, releio o livro de princípios
que, embora tão pesado, arrasto a todo lugar
justo para afastar tais desejos tão ímpios.
Ah, por que me curvei a tamanha contenção
desta minha faceta urdida na maldade?
Deste sentir que não merece a redenção
se ainda cresce submetido à minha vontade?
E o percurso da Newsletter deste ano trouxe consigo um roteiro para a leitura de Nietzsche. A Genealogia da Moral é apenas parte de um caminho extenso por todo o pensamento nietzschiano, até compreender essa jornada íntima de transvaloração dos valores, que pareço ter empreendido instintivamente. Creio que o filósofo tem muito a me ensinar; ele está esperando desde que li O Nascimento da Tragédia. Veremos o que ele tem a me oferecer em breve.
Por ora, noto que meu niilismo instintivo se expressava em poemas como “Contrição”, no qual a má consciência me custava mais energia do que eu dispunha para minimamente sobreviver. Retomemos o contexto da menina que escreveu “Contrição”: trabalho infantil, adolescência sobrecarregada com trabalho e estudo, abandono, solidão, neurodivergência.
A má consciência, meu maior algoz, levei comigo quando fugi de casa aos treze anos. Já era a voz do mundo internalizada, repetindo insistentemente a minha inadequação que extrapolava um desvio comportamental ou, como era lido, a propensão para a maldade. É preciso esclarecer que a maldade, em muitos contextos, é apenas a percepção limitada de um espírito questionador. Meninas perguntadeiras carregam a marca da perfídia. Acendem um alerta imediato nas mentes dispostas à manutenção da ordem conhecida, que cercam as macieiras com foices, machados, chicotes e tochas acesas, temerosos de cair de outro paraíso.
É, contudo, intrigante que em um período de encerramento de ano, com um balanço positivo — livro vindo aí, êxito acadêmico, caminhos divisados — este poema tenha cativado meus olhos. Me questiono se seu teor faz pleno sentido neste momento, ou se podemos extrair sentido de tudo quando decididos a encontrar?
“Contrição” é um poema que meu amigo Max, o crítico mais honesto dos meus primeiros escritos, não considerou sincero. Talvez, como um homem adulto, ele tivesse dificuldade de ver a turbulência interna em minhas feições jovens e delicadas. Sim, eu tenho um nariz de personalidade, mas que não me priva de um perfil de mulher “padrão”. E, nesse tempo, essa proximidade do padrão era mais evidente. Uma colega de trabalho certa vez me repreendeu por usar a mochila do exército de meu namorado, pois, segundo ela, não condizia com minha delicadeza. Outra elogiou minhas saias de poá quando demonstrei apreciar uma linda poltrona Chesterfield em uma agência para a qual trabalhávamos; segundo ela, eu combinava muito com a decoração elegante e clássica.
Sim, eu evocava esses códigos de feminilidade que não admitem o ódio informe e sem alvo direto. Mas eu não me via assim. De modo que Max me feriu um tantinho com esse comentário — não por eu atribuir verdade absoluta ao meu escrito, mas pela falta de sinceridade indicar uma falha de caráter. E as moças gentis, em suas repreensões e elogios delicados, ficaram gravadas porque eu não tinha certeza da sua sinceridade, afinal, eu não me via como delicada.
Eu lidava com esse ódio sem forma e sem alvo que não admite uma autopercepção apreciativa e imparcial. Eu sentia o mal em mim como uma nódoa que nunca sairia. E na luta excruciante para me civilizar adequadamente, aparando as arestas que me tornavam cortante e indesejada no âmbito social, eu lidava integralmente com essa faceta obscura do meu ser, que recusava a forma, o molde. Eu, como o ódio informe, recusava a forma solicitada pelo mundo. E isso, se é uma heresia, também é um indício da dualidade que mais tarde se transformaria em personagens e histórias.
O que torna esse poema relevante para este momento é o fato de que a trajetória até a sua releitura trouxe o confronto com a sombra e a dualidade que me marca como uma cicatriz. E esta dualidade evidencia a diferença neurológica. Creio, posso me equivocar, que somos todos duais, todos lidamos constantemente com nossa própria sombra, nosso repositório particular de horrores e delícias íntimas. Mas me parece, desde que me debruço sobre o assunto da neurodivergência nesta newsletter, que autistas nível 1 de suporte – especificando bem o meu lugar de fala – lidam com a latência da sombra em um nível de consciência intersticial. Parece ser um dos ônus de articular a máscara rígida sobre o âmago conturbado e informe.
“Contrição” é, portanto, um indício de um trabalho recém-começado. Posso sim, neste momento, lê-lo sem a mácula da insinceridade, perfeitamente ancorado nas características do TEA e da consequente dualidade acarretada pelo desconhecimento da neurodivergência e pela ausência de suporte. Contudo, ele é mais do que isso. Creio que este é um daqueles poemas cujos códigos podem servir para o surgimento de uma nova linguagem.
Então sim, o poema sobre o ódio informe com a pecha de insincero é uma semente caída em um solo profícuo. E dará frutos ainda.
Contrição
Direcionar esse ódio sem forma e sem alvo
é minha vontade mais bruta e desesperadora
Único desejo de que nunca me sinto a salvo
e do qual fujo numa ânsia constrangedora.
Pois raramente vejo onde é justo mirar
E quando vejo releiO o livro de princípios
que embora pesado arrasta todo lugar
justo para afastar tais desejos tão ímpios.
Ah porque me condicionei à contenção
desta minha faceta constituída de maldade?
Deste sentimento que não merece redenção
se ainda cresce submetido a vontade?
Por ora, deixo a versão revisada, perfeitamente encaixada na forma alexandrina, e a versão original, perfeitamente encaixada no desconcerto do meu mundo interno quando o escrevi.
E a lista de leitura para esta jornada, além de Nietzsche, inclui reler O Médico e o Monstro de Stevenson e Memórias do Subsolo de Dostoyevsky. São textos que olham para o abismo sem piscar. Se essas águas profundas também chamam por você, fica o convite para descermos juntos. Você me acompanha?


