"Concessões": Dor, Resiliência e a Simbologia do Cálice
A experiência autista não diagnosticada e uma poderosa simbologia tecendo uma narrativa maior e inclusiva.
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Concessões
Aonde vivo a dor é tão comum e covarde
que tento dirigir toda força psíquica
para a busca inquietante e drástica
da cobiçada e utópica felicidade
E quando sinto minha energia esgotada
me é concedido pelo universo providente
degustar de um cálice doce, suave e quente
de prazeres terrenos e da alegria desejada
A essas concessões me entrego condescendente
Desconfiada, sorvo cada gota lentamente
já presumindo quão maléfico é o artifício
Tendo condições combato a dor que me abate
e tento levar meu coração limpo ao combate
sangrando pelos dias doados em sacrifício
Diálogos com o Universal
Concessões ainda remete, a grosso moda, à ideia do cerco que “ Realidade” trouxe. Mas ao explorar a dinâmica do sofrimento e do alívio em um ciclo aparentemente interminável parece estar navegando na percepção da maioria dos poetas a respeito da realidade: “a constância somente na inconstância”. Gregório de Matos certamente me iluminava aos perscrutar as sombras universais à experiencia humana:
“A Inconstância dos Bens do Mundo – Gregório de Matos
Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.”Abordar temas universais da experiência humana é parte crucial de ser autista. O que se destaca nessa universalidade é a intensidade, os entraves sensoriais e cognitivos que truncam a experiência e a dificuldade de nomear essas experiências.
De uma perspectiva neurotípica, "Concessões" é um poema sobre melancolia e resiliência cínica. Retrata uma visão de mundo onde a felicidade não é um estado a ser alcançado, mas um breve interlúdio, uma trégua concedida para que a luta contra a dor possa continuar. Essa percepção pode ser também mediada pela filosofia cristã inculcada em minha formação. Assim, a verdadeira condição da existência, para o eu lírico daquela época, é o combate e o sacrifício. O valor do poema talvez resida na honestidade brutal com que essa percepção é articulada, sem autopiedade, mas com uma clareza e uma força que só a aceitação de uma realidade dolorosa pode proporcionar.
A Lente da Neurodivergência: O Custo do Masking
Isso poderia indicar maturidade. Mas provavelmente é só mais um registro de um processo de decodificação racional do mundo, o que passa por reconhecer seus padrões. E, para alguém para quem a previsibilidade traz segurança e conforto, detectar esses padrões permite criar um estado mental em resposta. Isso se desenha na terceira estrofe: a desconfiança se estabelece como a ferramenta principal de interação com o mundo. É triste, considerando a pouca idade, o quão solitária é a posição do desconfiado, que não se fia nas instituições mundanas e tampouco na coerência das pessoas. Daí que o diagnóstico precoce é a única via possível de haver pessoas neurodiversas emocionalmente sadias.
Forma e Intuição: A Estrutura do Poema
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O poema é elaborado na forma do soneto, com dois quartetos e dois tercetos, o que lhe confere uma tonalidade clássica e solene. Os versos são, em sua maioria, dodecassílabos (Alexandrinos). As rimas interpoladas criam uma sensação de cerco, espelhando a ideia de uma dor que "cerca de todos os lados", encapsulam o momento de alívio e conectam a desconfiança com a certeza do combate vindouro.
Eu, com absoluta certeza, não tinha uma preocupação formal a ponto de me dar ao trabalho de aprender tecnicamente a escandir os versos de um soneto e poli-los até se encaixarem perfeitamente na métrica. Minha preocupação era atravessada pela necessidade de expressar esse lugar onde a dor não era um evento esporádico, mas a norma. E a forma do soneto era a mais apreciada nessa época. "Palavras ao mar", de Vicente de Carvalho, e "Cântico Negro", de José Régio, me levariam a apreciar outras formas poéticas e rimas brancas no futuro. Mas a concisão do soneto me atraía mais na juventude. Contudo, ao perceber uma outra densidade no poema, adequar sua forma à estrita métrica do dodecassílabo me pareceu pertinente, e fiz pequenos ajustes.
Concessões-Dodecassilabo
Aonde vivo a dor é tão comum e covarde
que busco direcionar toda força psíquica
para a busca tão inquietante e drástica
da cobiçada e utópica felicidade
E quando sinto minha energia esgotada
me é concedido pelo universo providente
degustar de um cálice doce, suave e quente
de prazeres terrenos e da alegria desejada
A essas concessões me entrego condescendente
Desconfiada, sorvo cada gota lentamente
já presumindo quão maléfico é o artifício
Então, tendo condições combato a dor que me abate
e tento levar meu coração limpo ao combate
sangrando pelos dias doados em sacrifício
O Símbolo Central: O Cálice e o Arquétipo Feminino
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Apesar da adjetivação extensiva, o poema tem, para mim, essa qualidade observativa que não tenta imbuir de heroísmo a lida com a dor. É mais um poema que constata sem vitimizar e que mostra a sujeição aos processos cognitivos e psicológicos sem aventar uma saída, mas sem anunciar desistência. Ainda que o alívio não venha da vitória, mas do que parece ser uma trégua manipulativa, há uma resiliência que, se explorada na simbologia do cálice, nos remete ao feminino que investigo em contos de fadas e narrativas análogas ou nelas inspiradas.
Essa é outra forma não aventada quando da escrita do soneto, mas certamente o Cálice é um símbolo que dialoga com a temática do poema e com a exploração teórica que faço atualmente da relação entre a neurodivergência, o papel do trickster na sociedade e a energia criadora do feminino.
A conexão mais fundamental e primordial entre o cálice e o feminino reside em sua própria natureza como vaso ou recipiente. A simbologia do cálice traça uma analogia direta com o útero, símbolo da capacidade feminina de receber a semente, gestar a vida, nutrir e dar à luz. O feminino arquetípico é frequentemente associado à qualidade da receptividade. Enquanto o masculino é simbolizado pela lança ou pela espada (símbolos fálicos, de ação, penetração e projeção para o exterior), o feminino é o cálice que recebe, acolhe, contém e transforma (ou a cesta e a bolsa coletora, se atentarmos para a teoria da ficção de Ursula Le Guin). Ele não é um símbolo passivo; sua receptividade é uma força ativa que permite a transformação interior.
Quando um poema contempla processos psíquicos, denunciando uma situação estanque sem demonstrar passividade, ele bebe dessa fonte do feminino. Talvez por isso o autismo feminino seja tão diverso mesmo dentro do espectro. O cálice é, por excelência, um recipiente para líquidos. Na simbologia universal, a água representa as emoções, o inconsciente, a intuição, o fluxo da vida e a purificação. Estes são domínios tradicionalmente associados à energia feminina. E esses processos são, por si só, tão invisíveis quanto o próprio autismo feminino.
Não é à toa que existe a teoria, popular em obras de ficção e estudos alternativos, de que o "Graal" não era um objeto, mas sim uma referência a Maria Madalena como o "vaso" que carregou a linhagem sagrada (o sang real ou "sangue real") de Cristo. Nesta visão, ela é o cálice humano, a portadora da semente. De forma mais ampla, o Graal simboliza o princípio do Sagrado Feminino que foi suprimido ou perdido dentro da espiritualidade ocidental pela ascensão do patriarcado. A busca pelo Graal é, portanto, a busca pela reintegração da intuição, da compaixão, da sabedoria corporal e da conexão com a Terra.
A Experiência Autista do Símbolo: Entre o Refúgio e a Realidade
Ou seja, é tudo o que, para uma mulher autista, é imprescindível para estar no mundo e, ainda assim, por vezes lhe falta mais, dadas as diferenças biológicas, do que, talvez, a uma mulher neurotípica.
Mas mesmo a relação simbólica entre o cálice e o feminino, intrínseca e poderosa, é colocada na esteira das inconstâncias do mundo e percebida como uma artimanha de contenção no poema. Em minha defesa, para uma pessoa que se pauta pela racionalidade, a capacidade imaginativa e as tecituras narrativas que se desenrolam na mente são uma forma de alívio, mas também uma forma de fuga. O mesmo recurso da dissociação, relacionado ao shutdown, media o processo imaginativo, e o retorno à realidade é quase tão massacrante quanto se recobrar de um shutdown. No caso desses mundos secretos criados para deleite e alívio, a fuga talvez seja muito mais psicológica e sujeita ao escrutínio e à condenação tácita, enquanto o corpo combalido no shutdown inocenta o indivíduo de algumas culpas.
De qualquer forma, gostei de vislumbrar o "cálice doce, suave e quente" que o universo concede como um momento de profunda conexão com essa força feminina primordial: um instante de nutrição, de acolhimento e de restauração da força vital, que permite ao eu lírico continuar seu combate, alimentado por esse mistério contido no vaso da existência. Talvez o ato de escrever seja o resultado, justamente, dessa conexão. Mas esta é uma ideia que explorarei mais tarde.
Por ora, o que importa é que a experiência descrita no poema ressoa profundamente com os desafios enfrentados por autistas, especialmente mulheres, que muitas vezes desenvolvem o "masking" (mascaramento) como uma estratégia de sobrevivência social. Para uma pessoa autista, a experiência ensina que o alívio é sempre temporário. A alegria de um momento de paz ou de hiperfoco é vivida com a consciência de que o mundo neurotípico, com suas demandas esmagadoras, está esperando do lado de fora. O prazer é um artifício maléfico porque ele acaba, e o retorno à realidade da dor comum é inevitável e muitas vezes abrupto. O mundo real tem exigências, e cada dia vivido por trás da máscara é um dia doado em sacrifício. E o poema registra o sangramento invisível de energia vital.
Dessa forma, "Concessões" transcende o universal e se torna um documento histórico e pessoal da experiência autista. O poema captura o ciclo exaustivo de mascaramento, esgotamento, refúgio e o retorno inevitável ao sacrifício de si mesma para sobreviver socialmente.





