"Clausura" e a Chave do Entendimento: Ressignificando o Passado
Na adolescência, "Clausura" era um poema sobre depressivo sobre solidão. Hoje, ele se revela como a descrição precisa da prisão invisível de uma mulher autista não diagnosticada.
Anotação de Max, provavelmente feita em 2002.
Clausura
Às vezes acordo sem disposição
de desfrutar do dia que começava
Que termine logo, eu tenho pressa
Que cesse logo a minha provação
Com esse desejo me enclausuro
em minha indecifrável solidão
A esmo me arrasta a desolação
E toda sensação desencadeia o choro
Não lamento e nada imploro. Apenas sinto
que a alma é uma complexa miscelânea
de ilusões, amarguras e blasfêmias
que afloram sem meu consentimentoDor, Vergonha e o Dever de Esconder
Este poema pode ser lido como um retrato preciso e comovente da experiência da depressão ou de uma profunda angústia existencial, condizente com a turbulência hormonal da adolescência. Por isso ele era motivo de vergonha. E o deboche de meu amigo Max, um professor de português que conheci em uma breve passagem por um curso de teatro, não favoreceu minha percepção de que se tratava de um sofrimento a ser escondido. Suas notas aprofundaram um sentimento que presumo perpassar a existência feminina: o de que a dor da mulher é algo a ser escondido. Sejam as dores da carne ou da alma, elas são para ser vividas de forma velada e secreta. Essa intensidade não me favorecia, não expunha uma face que o mundo pudesse aceitar e a escondi. O que hoje pode ser interpretado como anedonia — a incapacidade de sentir prazer no estado depressivo — na época eu entendia como algo sombrio, uma nódoa a ser maquiada.
Anotação de Max em caixa alta e minhas notas, em um passado menos menos distante, em cursiva.
Para Além da Melancolia: O Diagnóstico como Chave de Leitura
Contudo, o que o poema descreve vai além de indícios de depressão e melancolia. Ele descreve a profunda exaustão que me acometeu hoje, por exemplo. Não fosse a escrita pela manhã, e esta que sinto no dever de realizar à noite, meu dia seria de letargia e medo de uma enxaqueca voraz me prostrar pela dor. Essa indisposição matinal foi muitas vezes ao longo de toda minha vida compreendida como um sinal de alguma virose, um resfriado ou gripe que, graças ao meu maravilhoso sistema imunológico, não conseguira se instaurar, apesar de um ou dois dias da luta invisível dos leucócitoss drenando as forças as forças. Apenas há 6 anos esses sintomas evoluíram para enxaqueca e o completo colapso do organismo por 12 horas cravadas. E mesmo assim, só enxerguei os padrões sintomáticos depois de meu diagnóstico de TEA.
Devo dizer que, embora eu tenha sido bastante produtiva pela manhã, é um sentimento de dever que me trouxe a este poema e a esta reflexão. O dia precisa render mais! Sim, me permiti negociar com meu corpo e, por fim, cedi e tomei a medicação para evitar a enxaqueca. E eu poderia simplesmente seguir a rotina e ir dormir depois de rever Wednesday- a série- pela quinta vez. Contudo, o condicionamento que me obrigou a mostrar produtividade, mesmo arrastando um corpo indolente ao longo de toda uma vida, ainda vigora. Claro, hoje eu vejo a vida de uma forma um pouco mais leve. Mas lembro muito bem como é o desejo ativo de aniquilação do tempo, a vida não vista como dádiva, mas como "provação". A "pressa" não é para viver, mas para que a experiência termine. Essa inversão do desejo vital é um retrato poderoso de um estado depressivo. Mas é também de uma sobrecarga sensorial.
Cada poema dessa fase revela, a meu ver, a fragilidade emocional de uma autista nível um de suporte, que sofre confinada nas amarras do gênero e, quando colapsa — "E toda sensação desencadeia o choro" —, tem sua dor relativizada ou compelida a ser segredada. E nos limites de sua neurologia divergente da norma, quando qualquer estímulo, por menor que seja, é suficiente para romper as barreiras e resultar em pranto, indicando um esgotamento psíquico profundo, ela está mais sujeita ao julgamento e ao abandono do que as mulheres que não lidam com esses desafios neurológicos. E, em um cenário que já é precário, a condição da mulher neurodivergente é insalubre.
O Vórtice Perigoso da Sobrecarga
Talvez por isso o clímax do poema seja uma postura de resignação diante de uma condição recorrente e imutável. E a palavra recorrente tem especial relevância, pois nesse poema, escrito há quase três décadas, há uma menina de cerca de 16 anos dizendo que lida com isso sempre. E se a coloquialidade do “às vezes” evoca frequência, é porque há uma precisão descritiva do estado psicológico decorrente da sobrecarga neurológica. E não é dramático demais aventar o quão próximo do desejo de desviver está uma psique entregue a ilusões, amarguras, blasfêmias e um organismo que foge ao controle. Há um vórtice perigoso na articulação entre a sensação de passividade e o descontrole diante dos próprios sentimentos que o poema descreve.
Compreender na atualidade que o paralisante e "indecifrável" que me acossava é uma neurodivergência devolve um pouco do controle sobre a situação e transforma radicalmente a leitura do poema. Ele deixa de ser "apenas" uma expressão universal de melancolia e se torna um artefato neurológico e histórico de imenso valor. É um registro bruto e preciso da experiência autista internalizada, feito por alguém que mapeava o próprio cérebro sem ter coordenadas.
Mina, a guardiã dos meus tesouros
A Máscara Oca: A Sobrevivência no Automático
O poema se torna um retrato quase clínico da sobrecarga sensorial, do esgotamento (burnout), da alexitimia e do isolamento como ferramenta de autorregulação, tudo isso sob o véu de uma linguagem poética que tentava dar forma a sensações para as quais aquela menina não tinha nome. E outras meninas, que não têm a inclinação para a escrita, serão, provavelmente, induzidas a chamar de loucura ou qualquer outro rótulo sob esse guarda-chuva.
Hoje sei que quando acordo cansada preciso respeitar o meu corpo e observar o desenrolar desse cansaço para detectar os sinais de enxaqueca e evitar, com a medicação, o total colapso. Sei que nesse estado minha atenção é comprometida e minha memória pode sê-lo também. Lembro de funcionar no automático muitas vezes na vida. E em outras sei que fiz tudo o que estava programado para ser feito, mas não recordo. Eu existi, sem viver. Sumi no oco de uma máscara tão bem treinada que podia operar sozinha. A um alto preço, claro.
Decodificando o Colapso: Dor vs. Curto-Circuito
Perder a vontade de falar ou interagir fora do script é algo que parece funcionar muito bem em um corpo feminino, porque socialmente passa despercebido e organicamente possibilita uma autorregulação. O ato de se isolar se torna uma estratégia de sobrevivência. É a busca instintiva por menos estímulos para evitar um colapso completo (meltdown ou shutdown). O quarto escuro, o silêncio, o "enclausuramento" são ferramentas para regular um sistema nervoso saturado. E a solidão é "indecifrável" porque não há uma razão social aparente; é um sentimento profundo e intrínseco de ser um "estrangeiro" no mundo.
A gente aprende a não colapsar em público. Aprende a operar no automático depois de uma crise. Aprende a esconder o choro. Aprende a compartimentalizar e sair do quadrante da dor, engolindo o choro até ser apropriado verter essa dor de novo. Uma das experiências que recordo vividamente dessa compartimentalização me leva a 2018, vivenciando o luto pela morte da irmã, pelo fim de um casamento, pela morte de alguns sonhos. Eu chorava todo dia, do trajeto de casa até o terminal de ônibus. Antes de entrar na sucursal do inferno chamada terminal do Pinheirinho às 7h da manhã, em Curitiba, eu secava o rosto. Focava em sobreviver ao empurra-empurra da turba semiacordada com sangue nos olhos. E assim foi até o portentoso colapso dentro do ônibus e algumas imagens infernais gravadas na memória. Contudo, o choro que o poema menciona não é derivado da compartimentalização. Ele não é sobre tristeza remoída, mas um curto-circuito do sistema nervoso. Ele não pode ser facilmente parado.
A Poesia como Documento Neurológico
É importante que seja de conhecimento público que a alexitimia gera um estado interno intenso e avassalador, mas os sentimentos não podem ser dissecados e nomeados. É uma massa de sentir, pura e não processada. A "complexa miscelânea" é um turbilhão de pensamentos, sensações e emoções não verbalizadas que caracterizam o mundo interno autista, especialmente sob estresse. O colapso neurológico é sem consentimento, porque são respostas neurológicas, não escolhas comportamentais. O poema descreve a natureza involuntária de reações neurológicas. Por isso agora o vejo como um documento.
Trata do testemunho de uma jovem mente tentando usar a única ferramenta que possuía – a poesia – para dar sentido a uma experiência neurológica que nem a ciência da época compreendia direito, especialmente no gênero feminino. O poema se torna assim um diário da sobrevivência autista, pois registra as estratégias (isolamento) e as consequências (burnout, colapsos). É também um retrato da alienação Pré-diagnóstico, ao capturar a dor de se sentir “indecifravelmente". E ainda apresenta uma Descrição fenomenológica da neurologia autista, ao articular com precisão poética conceitos como sobrecarga sensorial, alexitimia e desregulação emocional.






