"Caça": A Luta Pré-Verbal Pela Expressão da Dor e a Resiliência Neurodivergente na Poesia
A metáfora da busca por palavras vista pela perspectiva que transforma o fracasso em resiliência poética
Caça
Se eu pusesse em uma única palavra
a profunda dor que em minha alma mora,
esta de imediato deixaria de ser palavras,
pois qualquer sentido perderia na hora.
Assim, as palavras fogem da boca,
escapam ligeiras do meu raciocínio,
quando a dor no íntimo me ataca
e se alastra em um furor assassino.
E eu corro quase louca atrás delas,
como felino faminto cercando a caça,
até desfalecer de fome sem saciar-me nela.
E por este fracasso não conheço a ventura
e aumento a intimidade com a desgraça
que é a dor que em minha alma perdura.
Gênese e Influências
O poema "Caça" é uma exploração visceral da luta para verbalizar um sofrimento profundo. E eu tinha exatamente 14 anos quando o escrevi. Ele demarca a retomada da vocação para a escrita, abandonada diante de uma crítica feroz de uma professora aos nove anos. Cinco anos passados eu já compreendia a diferença entre um “texto”, como o que me fora solicitado na escola, e um poema. E não posso negar a influência de Augusto dos Anjos — “Eu” era meu livro de cabeceira — e Manuel Bandeira, que, em versos íntimos, fazendo versos como quem morre, incutiram algum sentido em minha existência. É inegável, contudo, que a jovem autora estabelece, desde a primeira estrofe, um paradoxo fundamental: a dor é tão avassaladora que qualquer tentativa de nomeá-la está condenada ao fracasso, pois a palavra se esvaziaria de sentido diante da magnitude do sentimento. A partir daí, o poema se desenrola como a crônica dessa perseguição desesperada e infrutífera pela expressão, culminando em um ciclo de fracasso e aprofundamento da própria dor. Não são versos íntimos que escancaram a brutalidade do mundo e a efemeridade das relações humanas, mas parecem imbuídos de um espírito científico que talvez agradasse a Augusto dos Anjos. O poema detecta um padrão de crescimento da dor relacionado ao processo de criação, que deveria ser libertador. Mas a escrita exige não apenas a dedicação, como o confronto das sombras que projetamos e que, por vezes, sobre nós são projetadas à revelia.
O Círculo Vicioso: Uma Leitura Neurodivergente
Assim como o poema "Clausura", "Caça", que divide a mesma página do velho impresso encadernado, apresenta um círculo vicioso. Correr atrás do próprio rabo, todavia, é feito sob o escrutínio da razão. O próprio processo da escrita se torna mote, mas conectado aos processos cognitivos que, ainda em desenvolvimento, somados à pouca cultura da tenra idade e do estrato socioeconômico, não davam conta das emoções. Relendo poemas como esse da perspectiva neurodivergente, percebo como tudo era demais para mim e o quanto precisei me educar para estar no mundo, criando resistências, calosidades e até embrutecimentos que me servissem de exoesqueleto.
A Linguagem Para Além das Palavras
Nesse tempo, a dor era uma experiência pré-verbal, uma sensação tão crua que a tentativa de traduzi-la em um símbolo a diminuiria. Mas o poema também expressa uma inadequação fundamental da linguagem. Para uma leitora de dicionários, a falta de significantes que expressem seus significados internos é um fenômeno digno de nota, que explicita ao mesmo tempo um embotamento cognitivo condizente com um shutdown, mas também um nível de linguagem que é além das palavras e se aproxima de imagens complexas e perfeitamente nítidas, como as vivenciadas no sonho. Sim, aqueles sonhos nos quais a comunicação é anterior às palavras e, a grosso modo, pode ser descrita como “por imagens”. Pelas minhas experiências oníricas, ouso dizer que há uma linguagem superior às palavras e anterior às imagens que formam significados no sonho. Funciona como um roteiro, mas ele não é escrito ou dito; ele se forma e edita o contexto onírico, reage ao sonhador, interage com ele, sem que sequer haja tempo para a elaboração disso em palavras.
A Personificação da Dor
O que me comove também, ao ler a poesia da menina sem nome, é a personificação da dor, que, ao se tornar uma entidade, não lhe pertence. É uma inquilina a ser decifrada, como se esse decifrar lhe desfizesse o encanto ou lhe tirasse o poder e a despejasse para fora. Contudo, essa detecção me remete a outro poema no qual a dor também é inominável. No poema "Há uma dor aqui", que foi integrado à obra Perséfone em Hades, o não nomear a dor é o que a desempodera. Claramente, a dor em "Caça" tem profunda conexão com o despertar da adolescência, e "Há uma dor aqui" é fruto da maturidade. São dores muito distintas, e "Há uma dor aqui" pressupõe uma escolha, enquanto "Caça" mostra um esquadrinhamento da alma, uma cartografia neurológica, mascarada de poesia, que recobre a busca por um lugar no mundo.
O Shutdown Poético
O ponto crucial é que a dor, como entidade, habita a alma, sugerindo constância, profundidade e agência, que se manifesta nas palavras fugitivas. A expressão não é apenas difícil, torna-se impossível, alinhando-se novamente com o desligamento gradativo de um shutdown autista. A dor aniquila a capacidade de raciocínio e verbalização, isolando o eu lírico em seu próprio sofrimento.
A Metáfora da Caça como Resiliência
Se, por um lado, essa conclusão denota fragilidade, a metáfora da caça não se refere ao eu lírico. As palavras são a caça. E nisso há uma certa reafirmação de poder ou ilusão de controle. No embate entre significante e significado, o eu lírico, que antes era a vítima passiva do ataque da dor, se torna um caçador ativo. No entanto, a caça não é por alívio. A comparação com um "felino faminto" evoca um desespero primal, uma necessidade instintiva de sobrevivência. A "fome" é a necessidade de expressar, de dar nome, de entender. O clímax da estrofe é o fracasso absoluto: a exaustão ("desfalecer de fome") sem a satisfação ("sem saciar-me"). A caçada não apenas falha, ela drena toda a energia vital. Mas o poema constrói resiliência. O poema traça um mapa, cria um registro da experiência. O poema treina a percepção enquanto a analisa.
Um Ponto de Partida
O ciclo se fecha: a dor causa a fuga das palavras, a caça às palavras fracassa, e o fracasso alimenta a dor original, que "perdura". Mas o poema, se não demarca uma vitória, demarca um ponto de partida, no qual a escrita torna-se a arma maior na arte de resistir.



