Aviso: A Construção da Voz e da Identidade em Duas Fases da Vida (Com uma Lente Neurodivergente)
Duas versões. Uma alma. Uma jornada de três décadas.
Pintura de 2019, sem titulo. Oryanna Borges
Aviso versão 2025
Detesto que me perguntem como vou.
Eu vou como melhor me convém:
Por onde possa ir só, em silêncio, bem,
e só quem eu quiser note que aí estou.
Nem me perguntem como me sinto.
Sinto-me sozinha em terra estranha;
sinto tudo o que esta alma contenha
e as emanações do mundo pressinto.
Quem eu sou é um disparate perguntar.
Sou labirinto de perguntas; as respostas
persigo no verso ainda por rimar
Não questione. O meu desejo é contemplar
até saber do que as criaturas são compostas
e de que maneira poderei me libertar.Um dos motivos deste poema ter permanecido inédito, mesmo nos áureos tempos das comunidades do Orkut, é o verso 11. Ele foi alvo de um chiste quando o mostrei a um colega do curso de teatro que frequentei por uns dois meses e que, por acaso, era professor de língua portuguesa. Não foi nos meandros da língua que fiz por merecer a crítica zombeteira, e sim nos vestígios do cinema em nosso imaginário. Ao lado do verso "o vento de mim levou e o tempo esqueceu", o professor Max escreveu "Scarlett". E o vento levou minha confiança de mostrá-lo.
Contudo, ao reler o poema à luz da recém-descoberta neurodivergência, ele ganha outras nuances, para além do drama adolescente. Afinal, a tendência de um autista é realmente responder como está quando lhe perguntam. Eu, pelo menos, mesmo sabendo que é uma pergunta retórica integrante de um ritual social, sempre tenho o impulso de responder. E, dependendo do nível de proximidade da pessoa, posso escorregar e realmente contar como vou, expondo-me demais e recriminando-me depois. No tempo em que esse poema foi escrito, eu era uma pessoa muito diferente e bem menos verbal do que sou hoje. E a pergunta sempre me incomodava. Parecia-me invasiva e parte de um ritual sem sentido. Sobretudo, eu não me sentia bem, e responder "estou bem" ou "vou bem" soava como uma mentira que mexia com meus nervos.
Ainda assim, o poema original tem um valor imensurável para mim.
Aviso- Versão Original
Detesto que me perguntem como vou
Eu vou como melhor me convém
Por onde possa ir só, em silêncio, bem
e só quem eu quiser note que aí estou
Nem gosto que me perguntem como me sinto
Sinto-me sozinha em terra estranha
Sinto tudo o que minha alma contenha
E ainda as sensações do mundo pressinto
Sequer ousem perguntar quem sou eu
Sou labirinto de perguntas; as respostas
o vento de mim levou e o tempo esqueceu
Não questione. O meu desejo é contemplar
até saber do que as criaturas são compostas
e de que maneira poderei me libertar 


