Autismo Feminino e a Construção de Mundos: Uma Análise Autoetnográfica do Poema "Busca"
Uma reflexão sobre a arte como mecanismo de sobrevivência. A filosofia — de Nietzsche a Viktor Chklovski — ajuda a explicar a sensação de "estranhamento" vivida por muitas mulheres no espectro.

Busca
Busco algo que em mim parece perdido
A Essência de um bem que eu desconheço
Elevada liberdade para o coração submisso
Um valor mais nobre do que me é oferecido.
Busco a satisfação próxima do esgotamento
Entregar-me a envolvente e prazeroso vazio
Nutrir-me de caos sem culpa até o fastio
Observar sem obrigatório entendimento.
Para então poder redecorar os pensamentos;
arquitetar para ilusão novos palácios
e finalmente ter como maior do sacrifícios
dar vida e expressão aos meus sentimentos
Entre o Diagnóstico e a Máscara: Uma Perspectiva de Gênero
Esmiuçar essa escrita da adolescência e início da vida adulta não é uma ação motivada apenas pelo desejo de demarcar onde estão os indícios do TEA, ou de enfatizar as diferenças entre o autismo dito “feminino” e o masculino. Claramente, o gênero como construção social influencia imensamente essa definição quando se trata de autismo nível 1 de suporte.
O meu propósito passa, sim, por ressaltar as dificuldades e os traços autísticos expressados, enfatizando o quanto esse sofrimento precisa ser acolhido e minimizado pela intervenção o mais precoce possível. Contudo, o propósito maior ao redor do qual estes orbitam, é encontrar os mecanismos de sobrevivência e evidenciar o que torna o mascaramento feminino (masking) tão eficaz, a ponto de incorrer nas convenções de gênero — especialmente porque a compreensão de gênero de um autista é, muitas vezes, limitada. Eu mesma só fui compreender tardiamente que muitos de meus embaraços e problemas advinham de uma postura não enquadrada no conceito tradicional de feminilidade. Ser autônoma e assertiva — um objetivo buscado e obtido — fez-me ser percebida como arrogante, ridicularizada pelos homens e odiada por algumas mulheres. Infelizmente, só compreendi isso aos 44 anos. Ou seja, vivi a maior parte de minha vida alheia a essas convenções mal percebidas e nada assimiladas. Na maior parte do tempo, percebi-me apenas como “uma pessoa no mundo”, sofrendo os reveses sem compreender que estes se originavam em minha conduta de não me colocar no lugar que socialmente me cabia: o da mulher.
O Poema como Arquitetura de Sobrevivência
O poema Busca postula o desejo por um lugar um pouco mais amplo e menos contaminado pelos preconceitos que esfacelam a existência feminina. Este poema é um romance de formação condensado em rima, para que o ritmo e o som evoquem a magia da transformação. Ele narra a transição da “menina estranha”, que sofre por não se encaixar, para a “arquiteta de mundos”, que decide que, se a realidade não a acolhe, ela construirá uma realidade (os palácios) onde seus sentimentos possam ter vida e expressão. É um texto de autoafirmação através da dissidência. Não há um pedido para ser consertada no poema, mas a elaboração formal do desejo e da permissão interna para “arquitetar” uma lógica própria.
Dentro dessa lógica, nasce a criadora de mundos ficcionais. Há um acolhimento interno da própria diferença neurológica. O acolhimento que o mundo nega é inventado, talvez, a partir deste poema. Cada verso parece funcionar como um processo de elaboração — laborioso, como pressupõe a própria etimologia da palavra.
A Recusa da “Vida Nula” e o Chamado do Inefável
Percebo que há uma apreensão constante da dualidade. O mundo é percebido como extremos, mas as palavras constroem pontes ao promulgar o desejo. O contraste entre a “elevada liberdade” e o “coração submisso” sugere que a busca é por romper amarras internas. O eu-lírico rejeita o que lhe é oferecido (o mundo comum/material) em prol de um “valor mais nobre”. É o chamado da alma por algo que transcenda o cotidiano.
Lembro-me perfeitamente de que minhas duas fugas (da família aos 13 anos e do namorado aos 20) tinham esse intuito claro de escapar da previsibilidade de uma vida nula. A nulidade estava em saber exatamente o desfecho da história: crescer, casar, ter filhos, comprar uma casa, um carro e trabalhar até se aposentar, “gorda e sem dentes”. O Ouro de Tolo, dizia Raul Seixas, cooperando para a perspectiva niilista que me acossava diante do roteiro pré-fabricado da vida.
O Tempo Psicológico e a Dinâmica Apolíneo-Dionisíaca
De certo modo, este poema em três estrofes reflete a dualidade primária que me acossava — e ainda acossa: a ordem externa, imposta e patriarcal, calcada na autoridade masculina do pai ou do Deus-Pai; e a ordem interna, completamente dissonante e, por isso mesmo, lida como caos. Há um impasse nietzschiano nessa micronarrativa poética: a ordem externa é apolínea, linear e previsível; a ordem interna é dionisíaca, visceral e desconhecida. E, ainda por cima, esta ordem interna funciona em outro tempo, que minha amiga Ruth Cassab Brólio chamou de “tempo psicológico” no prefácio de TEA Menina.
Esse tempo se origina de um processamento retardado e ruminante. Surgia, e ainda surge, como intuição ou como um arrebatamento repentino por uma ideia já formada e límpida como um curso de água. O que parecia impulso era, na verdade, uma ação arrazoada, proveniente de uma deliberação paralela à própria consciência, esta ocupada em sustentar a máscara. Foram décadas de treino até aprender a ouvir e confiar nesta “intuição”, cuja gênese se mostra tão despudoradamente neste poema.
E sim, é uma gênese. Por um momento, ela parece apolínea em seus três atos. Contudo, ao incorporar a dissolução como parte do ato de criação na segunda estrofe, o poema torna-se dionisíaco. Não apenas pela evidente compreensão de que o caos é nutritivo, mas por abraçá-lo como parte indissociável do ser. Para reestruturar a ordem apolínea externa, é preciso nutrir-se de caos, tornar-se o caos e “observar sem obrigatório entendimento”, sem forçar a racionalização de algo que precisa ser fundado em uma compreensão da natureza cíclica da existência.
Mitos, Patriarcado e a Recuperação do Sentir
Em minha dissertação de mestrado, abordei essas “ordens” no escopo da narrativa cinematográfica e da sociologia, com ênfase nos estudos de gênero. Dessa perspectiva, o apolíneo e o dionisíaco eram incorporados em mitos olímpicos e pré-olímpicos. O panteão olímpico, presidido por Zeus, era o espelho da ascensão da razão e do declínio da natureza, representada pelos vestígios das Deusas cultuadas em sociedades matriarcais. A Deusa-Mãe, antes de seu território ser conquistado e seu culto “hackeado”, era o avatar tanto da criação quanto do caos e da destruição. A imagem de uma Deusa-Mãe é multifacetada e sua ação sobre o mundo é polivalente, pois ela abraça a natureza cíclica da existência. O ordenamento supostamente racional da ascensão patriarcal, representada pelo panteão olímpico, é estratificado, permeável à injustiça social e à opressão de muitos em favor de uns poucos felizardos orientados para a performance heroica.
Hoje cooptada pelo storytelling mercadológico — que Byung-Chul Han espertamente redenominou storyselling —, esta mesma performance heroica erige uma casca vazia, um ideal de perfeição que nos impede de sentir. Eu queria sentir. E intuía que, para sentir e compreender, precisava preencher-me de vazio. Vazio de parâmetros externos para este sentir. O caos se mostraria e eu saberia restabelecer alguma ordem de sentido. Há uma intuição poderosa neste poema. Bravo, menina!
Ciclos Biológicos, Caos Fértil e a Arte como Procedimento
A reconstrução pela Arte só poderia advir deste acolhimento do caos, cujo propósito é abrir espaço para o novo. Não apenas uma nova ordem, mas um novo ser. Um ser que sente, que não teme o caos ocasional e que compreende os ciclos da existência. O caos passa. E deixa o terreno fértil.
Esta analogia induz a uma digressão biológica. Quando, depois do grande colapso de 2005, dei-me alta ao fim de quase três anos de tratamento, passei a me observar enquanto efetuava o “desmame” da quantidade absurda de remédios para todas as patologias psiquiátricas que havia. Percebi que, embora meu diagnóstico mais persistente fosse a bipolaridade (a moda diagnóstica da época), minhas únicas oscilações de humor eram hormonais. O caos se instaurava por três dias. A dor física era insuportável, mesmo sob efeito de anti-inflamatórios, e a dor da alma era imensurável. Mas, nesse processo observacional, concluí que o mundo acabaria por três dias e logo voltaria ao normal. Considerando o ciclo menstrual, logo eu me tornaria fértil e viva, de modo que valia a pena suportar três dias “semimorta” para mais vinte e tantos de “normalidade”.
Esta mesma analogia perpassa o poema: abraçar o caos porque ele é temporário e precursor de fertilidade. E o sacrifício final tem uma conotação de ofício sagrado.
Sim, este é um texto sobre “inspiração artística”, sobre a gênese da criadora de mundos que eu me tornaria, mas é também um documento de sobrevivência psíquica. Desvela mecanismos criativos e dialógicos de narrativa interna. Sim, há o esgotamento, o shutdown, a alexitimia. Mas também há o recurso de superação. Há a arte como procedimento. A elaboração dos processos internos de modo a trazê-los à luz e causar estranhamento para, por fim, renovar a percepção, ou construir uma nova percepção de si e do mundo. Há autocriação e autoficção. De onde só me cabe, neste momento, a autoetnografia.
CHKLÓVSKI, Viktor. Arte como procedimento. Tradução de David G. Molina. RUS (São Paulo), São Paulo, v. 10, n. 14, p. 153-176, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/153989. Acesso em: 20 nov. 2025.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
SILVEIRA, Moacir. OURO DE TOLO com RAUL SEIXAS, edição MOACIR SILVEIRA. 8 out. 2014. 1 vídeo (3 min 22 s). Publicado pelo canal Moacir Silveira. Disponível em:
. Acesso em: 20 nov. 2025.


