
Intento
Choro, ranger de dentes, calafrio
Sufocamento, cólera, calor
Angustia, tensão, desvario
Suór, inconformismo, tremor
Quantas palavras no intento
simples e honesto de dizer
que o coração doce que ostento
sente um ódio de estremecer
O corpo se rende à convulsões
Aos rudes e necessários trejeitos
Pois o coração em tais condições
exige toda a força do meu peito
Toda palavra, por mais mansa
que possa aos ouvidos ressoar
não evoca a paz e a bonança
dispersadas feito sopro no ar

Um Poema, Um Corpo, Um Diagnóstico Tardio
Ok, mais um chorume da adolescência? Cansado já, de ler mais do mesmo? Oooh!!
Então imagine o quão cansada estava a menina que escreveu este poema. Sim, uma menina que, desprezada pela própria família, fugira de casa aos treze anos e por isso precisava não apenas sobreviver, mas conter dentro de si o tal monstro que a tornara “persona non grata” no próprio seio familiar.
Só desta perspectiva, o poema já ganha outro valor, não é? Agora, adicione a neurodivergência. Sim, adicione como um filtro nessa lente de juiz que você colocou. Note, isto não foi uma acusação, e sim mera constatação. Somos todos juízes acerca de vidas que não vivemos e, na maioria das vezes, nos pautamos por aparências ou cenas contaminadas, ou montadas especificamente para nossos olhos.
Não, não negue o extremo oposto de usar filtros de rejuvenescimento e fofura nas redes sociais, que é esse alocar a monstruosidade no que é diferente e desconhecido. Mais uma vez: não estou acusando. Constato apenas. Eu também faço isso; mesmo em um estado de hipervigilância, consigo cometer essas atrocidades e temo o desconhecido a ponto de me enrijecer em hábitos e rotinas.
Apenas admita que este poema tem força visceral e explora a dissonância entre a essência de uma pessoa e a avassaladora força de uma emoção negativa. E que, no entanto, o poema não é sobre o ódio em si, mas sobre a difícil, dolorosa e talvez fracassada tentativa de sublimá-lo.

A Forma como Máscara: Métrica e Contenção
Em vez de uma repetição sumária das características e comorbidades do TEA que posso divisar neste poema, façamos uma análise mais formal para distanciá-lo um pouco dessa sombriedade que, eu sei, você contemplou em si por alguns segundos.
O poema é composto por quatro quartetos (estrofes de quatro versos) com um esquema de rimas cruzadas (ABAB). A métrica parece regular, predominantemente em redondilha maior, o que lhe confere uma musicalidade clássica. Essa estrutura formal e controlada cria um contraste poderoso com o caos das emoções descritas, como se o eu lírico tentasse conter uma convulsão dentro de uma forma rígida.
(Desculpe, não posso perder aqui a analogia do corpo como prisão, o corpo como contenção e, ao mesmo tempo, estorvo, que já abordei em outras análises... mas retomemos a tecnicalidade.)
A Crise em Quatro Atos: Análise das Estrofes
Ato I: A Sobrecarga (Primeira Estrofe)
Choro, ranger de dentes, calafrio
Sufocamento, cólera, calor
Angustia, tensão, desvario
Suór, inconformismo, tremor
A abertura é uma avalanche de sensações físicas e psicológicas. O eu lírico não descreve a emoção, ele a lista como uma série de sintomas — a sintomatologia que seu médico talvez listasse em uma anamnese. A ausência de verbos de ligação torna a lista imediata, sufocante e febril. É uma sinfonia da dor, um diagnóstico de um estado de colapso iminente. Pense nela como se fosse escrita pelo corpo, na caligrafia de um médico. Só o poema pode decifrar esses garranchos, como um farmacêutico treinado pelo costume e pela familiaridade com a nomenclatura dos alopáticos.
Ato II: A Causa (Segunda Estrofe)
Quantas palavras no intento
simples e honesto de dizer
que o coração doce que ostento
sente um ódio de estremecer
Esta estrofe é o coração do poema. Ela revela o conflito central: a contradição entre a identidade percebida e a realidade do sentimento. A palavra “ostento” é particularmente interessante, pois sugere uma fachada, algo que se mostra ao mundo. O “intento” é, portanto, romper essa fachada e expressar uma verdade brutal, incongruente com a própria autoimagem.
E o poema faz isso formalmente, pois esta é a única estrofe em uma redondilha perfeita de sete sílabas poéticas. A menina não sabia a métrica. Pode ser um mero acidente ou “música que aprendi de ouvido”, como diagnosticará um outro poema no futuro.
Ato III: O Colapso (Terceira Estrofe)
O corpo se rende à convulsões
Aos rudes e necessários trejeitos
Pois o coração em tais condições
exige toda a força do meu peito
Esta estrofe esculhamba a métrica da redondilha, mas mantém um padrão: eneassílabos e octossílabos perfeitamente alternados. A emoção que transcende o campo psicológico e domina o corpo também vaza da métrica. A somatização é total. As reações físicas, descritas como rudes, mas também necessárias, indicam uma válvula de escape inevitável para uma pressão interna insuportável.
Isso me remeteu imediatamente a uma conversa com uma perita, na qual minhas mãos alinhavam uma dobra da pasta plástica enorme, abarrotada de documentos. Ela me perguntou sobre meus stimmings, mencionando o gesto convulso que parei imediatamente. “Eu não sei”, foi a resposta. Você já esteve em uma perícia médica? Se não, evite.
Quando a emoção é tão poderosa quanto o poema exprime, exige uma resposta física completa, uma purga, um balanço que remeta ao conforto sensorial da repetição. Os rudes e necessários trejeitos postergam o choro e o concomitante colapso que ele traz.
Ato IV: A Exaustão (Quarta Estrofe)
Toda palavra, por mais mansa
que possa aos ouvidos ressoar
não evoca a paz e a bonança
dispersadas feito sopro no ar
A conclusão reflete sobre a ineficácia da linguagem. Meu senso de humor hoje, em plena ação, me tirou um riso inteiro sem traço externo que você pudesse perceber: lembrei da frase “fique calma”, que comumente leva uma mulher que está sob controle de si mesma a se exasperar. Mesmo dita de forma a conclamar verdadeiramente um estado de calma, ela contém em si a faísca da destruição, tão potente e enraizada no sofrimento das mulheres que causa incêndios calamitosos sobre águas serenas, mas profundas e escuras. Este é o único desconhecido que ninguém parece mais temer: o das águas profundas e escuras que habitam a psique de uma mulher.
Enfim, me perdoe pela digressão poética. Acredito que o eu lírico neste poema não consiga encontrar as palavras, ou que elas não sirvam mais quando encontradas. Acredito porque não posso dizer que lembro. Neste momento, símile a outros mais vivos em minha memória e também guardados em poesia, sei que ela não pode tecer asas para transpor o abismo, porque seu corpo se tornou o abismo, e a mente está ali retida. A calma foi perdida de forma definitiva, “dispersada feito sopro no ar”. A verbalização serve para purgar, mas não para curar.

Sismógrafo da Alma: A Poesia como Documento Neurodivergente
Não mais chorume das lixeiras nas quais compostamos por descuido os dejetos da adolescência, o poema demonstra como uma emoção avassaladora pode tomar o corpo como refém e como, no fim, as palavras podem falhar em sua função de trazer alívio, servindo apenas como um testemunho. É um retrato honesto e poderoso da vulnerabilidade humana diante de suas próprias tempestades internas, que se torna grotesco quando a ele se acrescentam as nuances do espectro autista. E a quarta estrofe dança descompassada entre heptassílabos, octossílabos e eneassílabos.
Então, sim, preciso dizer que o poema pode ser lido como um documento preciso sobre o ciclo de uma crise autista, desde a sobrecarga sensorial e emocional até o colapso (meltdown/shutdown) e a exaustão subsequente.
É uma descrição fiel de uma sobrecarga sensorial e emocional.
É o retrato de um sistema em alerta máximo, prestes a entrar em colapso.
É uma descrição perfeita do masking (mascaramento).
É uma amostra de um esforço consciente e exaustivo.
É a descrição indireta da alexitimia, a dificuldade de identificar e verbalizar as próprias emoções.
O “intento” é a luta desesperada para que o mundo interno, real e caótico, seja compreendido.
É uma defesa da necessidade do stimming, uma válvula de escape neurológica.
É uma descrição literal do meltdown em suas etapas e processos.
É o registro de uma jovem que, décadas antes de ter um diagnóstico que lhe desse um mapa, conseguiu descrever com precisão o território desconhecido de sua própria mente. É uma validação da experiência de incontáveis autistas que cresceram sentindo-se “errados” ou “quebrados”, sem entender que seu corpo e cérebro apenas reagiam de maneira diferente e necessária.
Sim, há um corpo neste poema. E o seu sistema nervoso, sobrecarregado, força-o a uma descarga motora e por fim a um desligamento temporário, como aquele computador velho que aquece e trava. Não é uma escolha, é uma rendição, um colapso. E há uma criança – sim, eu sei, adolescente, mas “criança” é uma acentuação dramática – que, mesmo sem o vocabulário técnico, intuiu que aquelas reações, embora vistas como “rudes” pelo mundo exterior, eram essenciais para sua sobrevivência.
A poesia, em sua essência, busca dar nome ao que não tem nome, forma ao que parece disforme. O poema “Intento” é um exemplo visceral desse poder. Se você, em minhas tentativas pretéritas, se sentiu compelido a duvidar que a estrutura, a escolha de palavras e a sequência de um poema podem espelhar com tanta fidelidade uma experiência neurológica ainda não diagnosticada, a presente jornada buscou dirimir esta dúvida.
Para conter essa explosão interna, uma estrutura poética clássica. Essa escolha intuitiva daquela jovem autora pode ser formalmente interpretada como a tentativa de forçar o caos a caber em uma caixa organizada, de manter o controle, a aparência de normalidade, enquanto o mundo interior se desfaz. Contudo, a crise é tão forte que ela vaza, quebrando a própria estrutura.( E eis a metáfora do quadro de onde a figura vaza, explorado visualmente em Escapatória). Vários versos do poema escapam da métrica de 7 sílabas. A forma não aguenta a pressão. A máscara poética racha, assim como a máscara social.
Se você prefere a narrativa à poesia, provarei ao mesmo tempo que a poesia é narrativa e que a narrativa pode ser poética. O poema desenrola sua lógica clínica em quatro atos:
Ato I - A Sobrecarga: O bombardeio de sintomas. A descrição da sobrecarga sensorial e emocional, o momento em que o sistema nervoso está em colapso, inundado por mais estímulos do que consegue processar.
Ato II - A Causa: O porquê da crise: a tensão insuportável entre a máscara (coração doce) e a realidade interna avassaladora.
Ato III - O Colapso: A crise explode no corpo. As convulsões e os rudes e necessários trejeitos são a descarga motora e sensorial que o corpo executa para tentar se autorregular.
Ato IV - A Exaustão: Após a crise, não vem a paz, mas o vazio. As palavras mansas do mundo exterior são inúteis, pois a paz e a bonança foram aniquiladas. É o retrato da exaustão pós-crise.
“Intento” é, portanto, muito mais que um poema. É um sismógrafo da alma, um documento que registrou, com décadas de antecedência, os tremores de uma identidade que só mais tarde encontraria seu nome. Ele nos convida a ler não apenas as palavras, mas a lógica, a forma e o silêncio que existem entre elas.


