Anjos sem Luz: Do Confronto com Deus à Armadura de Amor Próprio
Como a mente autista encara a hierarquia divina? Uma crônica pessoal sobre trauma, negligência familiar e a construção de uma 'armadura de amor'.

Anjos sem Luz
Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem
São seres sem luz, não criaturas das trevas
Não encontraram corações que os amem
Mais do que a maldade que os leva
Que importa se roubam seu pão
Ou matam pelo amor tão egoísta?
Mostrai alguém que lhes estenda a mão
Com o trabalho que dignifica e conquista
Dizei palavras de um real incentivo
Na voz de um leal e nobre amigo
E assim tereis mais corações cativos
Segurai-lhes a mão no caminho estreito
Dai-lhes carinho e sempre o vosso abrigo
E vereis um de vossos anjos a dormir no leito
A Lógica Autista e a Hierarquia Divina
Ao reler este poema, dei-me conta do quão “sem noção” de hierarquias sempre fui. Em meus confrontos literários com o Criador, eu o desafiei e o enfrentei com meus argumentos, mas este tem a audácia de ensiná-lo a lidar com suas crias.
O que o poema evidencia, acima de tudo, é um ponto nevrálgico da experiência neurodivergente: a hierarquia social muitas vezes faz menos sentido para a mente autista do que a lógica da justiça. Por isso, Deus pôde ser aconselhado com essa petulância — precursora de tantas outras rechaçadas pelo mundo. Se por muito tempo tive vergonha desse tipo de escrito, desta vez eu ri; não sem recobrar, das profundezas do meu ser, o tipo de piedade que suscitou a escrita original.
Filosofia da Ausência: A Origem do “Mal”
Eu tinha 17 anos quando estabeleci essa distinção filosófica crucial: a maldade humana não seria inerente, mas criada pela ausência de luz, amor e dignidade. Ainda que a ciência conteste esse meu posicionamento hoje — visto que existem distúrbios de personalidade desumanizantes que apresentam, sim, uma natureza perversa —, na época, eu precisava desesperadamente explicar ao Criador que era ausência, e não essência, o que me nivelava por baixo e me vitimizava.
O mal que apontavam em mim era, na verdade, a ausência do amor e da dignidade que eu ansiava. Eu, que vivia na escuridão, sabia que a necessidade induz tanto aos pequenos crimes quanto aos delitos hediondos.
Dinâmica Familiar e Invisibilidade
Eu também tinha em mente meus algozes: aqueles que me negavam o direito de ser. Meus familiares, que deveriam me proteger, não viam em mim utilidade e, consequentemente, não viam minha razão de ser. Enquanto isso, eu acreditava que poderia curá-los do vil egoísmo — que me invisibilizava ou vilanizava — se lhes desse o que eles não me davam.
Tive essa oportunidade cerca de três anos depois e, passadas mais duas décadas, quase caí novamente no “conto do vigário” da família unida e feliz. Ainda assim, nunca pude vilanizar essas pessoas. Na escrita de TEA Menina, mapeei suas dores e lancei holofotes sobre seus transtornos — sem, no entanto, nomeá-los —, justificando, sem desculpar, o mal que causaram.
O Paradoxo da Fé e a Violência Social
Quando ousei ensinar Deus a cuidar dos seus, eu vivia sob o jugo dos ensinamentos cristãos e, carente de pai e mãe, precisava desse diálogo com uma figura paterna. Infelizmente, minha afronta revelou-se falaciosa, uma vez que “os meus” me mostraram, repetidamente, que a cura para a violência social não é apenas o afeto e a oportunidade. Tampouco é a punição. Talvez seja mesmo o perdão.
Por outro lado, eu sou a prova de que a monstruosidade é uma casca criada pela negligência socioafetiva e que, sim, a oportunidade e o afeto são vias de salvação. De algum modo, este Deus que eu afrontava de modo contumaz proveu sempre uma mão amiga e uma voz benigna para me amparar. Ainda assim, não vejo meios de firmar minha posição solitária como um dado efetivo nesse quadro estatístico.
Conclusão: A Armadura de Amor
O poema evidencia que a busca por entender o que está oculto permanece. Lá atrás, eu olhava para o “criminoso” e via um anjo sem luz. Hoje, olho para o “submundo” (Hades) e vejo a complexidade e a dor, sem necessariamente prometer uma “cura” simples, mas sim uma “armadura” — uma proteção feita de amor. Talvez uma proteção que sempre tive, mas não sabia nominar.


