"Andarilha": A Cartografia do Não-Pertencimento
Descubra em 'Andarilha' um retrato visceral do autismo feminino não diagnosticado. Uma análise autoetnográfica do poema sobre os impactos do masking, a dissociação em público e a busca por identidade

Andarilha Angustiada pela injustiça que é viver sem saber o motivo; viver buscando um desvio da infelicidade da vida. Sem saber o momento apropriado de desistir do comum e razoável, de dizer a si mesma a verdade ignorando o alcance das palavras; sem saber — abusando da intuição — criar a felicidade de uso frequente, temendo ser impulsiva e impertinente no intuito de obter satisfação. Temendo ser egoísta e arrogante por nunca desistir de achar na vida o prazer de que não desfruto ainda.
A Cartografia do Não-Pertencimento
Este é um poema cuja escrita não me recordo. Não surgem aqueles fiapos de memória que, como tiras de outro tempo, podem ser retecidos em uma tapeçaria recicladora. O sentimento de errância, todavia, é muito familiar. E o poema, que se apresenta como um retrato de melancolia existencial, ao modo de um tapete de retalhos cujas tiras se movem formando outras imagens e texturas, revela algo mais profundo. Sob a ótica da neurodivergência, “Andarilha” é o testemunho de uma consciência tentando operar sem o “manual” do mundo. O eu-lírico não está apenas vagando por uma paisagem; está perambulando pelas margens de uma sociedade cujas regras lhe parecem estranhas e, por vezes, hostis.
A Dissociação como Paisagem
A obra abre com uma imagem de desorientação: “tão perdida quanto o pensamento”. Literariamente, isso estabelece uma atmosfera de nevoeiro psíquico. Sob a lente do autismo não diagnosticado, isso traduz a experiência frequente de dissociação ou desrealização. A “andarilha” aqui não é alguém que viaja para descobrir o mundo, mas alguém que se sente exilada dentro da própria mente. Há uma cisão entre o sujeito e o entorno, refletindo a sensação de “alienígena” comum a muitas mulheres autistas antes do diagnóstico: estar fisicamente presente, mas fundamentalmente desconectada da lógica que rege o ambiente. E eu sempre soube que era diferente, embora, como se diz hoje em dia pela Web, a “minha skin” não revelasse a diferença. Mulher branca “padrão”, eu era a imagem de um privilégio que nunca consegui desfrutar.
O Conflito entre o “Razoável” e a “Verdade”
O peso do masking é o coração do poema. E pode ser lido na tensão descrita nos versos: “desistir do comum e razoável / de dizer a si mesma a verdade”. Aqui, o “comum e razoável” pode ser lido como a performance da neurotipicidade. A poeta adolescente percebe, intuitivamente, que manter essa fachada exige um esforço hercúleo e que “dizer a verdade” (assumir sua natureza autêntica/divergente) é visto socialmente como uma desistência ou falha. A angústia vem da exaustão de sustentar um personagem que não condiz com a sua realidade interna. Isso me leva a refletir sobre a performance da feminilidade, especialmente para as adolescentes autistas. Sempre penso que, se eu fosse do gênero masculino, minha vida teria sido favorecida por uma liberdade de ação que me era reiteradamente negada.
A Injustiça do “Não Saber”
O poema aborda a necessidade autista de lógica e sentido. A dor não vem apenas da tristeza, mas da falta de compreensão sistêmica: “Por que as pessoas agem assim?”, “Por que sinto o que sinto?”. Para a jovem autora, a vida parece um jogo cujas regras foram distribuídas a todos, menos a ela. Essa busca pelo “motivo” é a tentativa de intelectualizar a existência para sobreviver a ela.
A Culpa, a Internalização de Rótulos e a Teimosia da Esperança
Talvez a parte mais crua do poema seja o medo de ser “impulsiva, impertinente, egoísta e arrogante”. Esta estrofe é um inventário dos rótulos incorretos que a sociedade impõe ao comportamento autista feminino, e que eu não teria se fosse homem, mas não absorvia como indicativo do lugar que deveria ocupar, e sim como violência gratuita.
Apesar da confusão e da culpa, o poema encerra com uma nota de resiliência desafiadora: “nunca desistir de achar na vida / o prazer de que não desfruto ainda”. Isso revela que, mesmo “perdida”, a Andarilha sabe que existe uma forma de felicidade compatível com ela, mesmo que o mundo “comum” ainda não a tenha oferecido. É a recusa em aceitar que a vida deve ser apenas sofrimento e adaptação forçada. “Ainda” é a palavra que encapsula a esperança, transformando a andarilha em uma peça de resistência. Uma peça que confere uma dignidade lírica a um sofrimento invisível e o transforma em arte sonora e tangível.


