A Fera que Guarda a Jaula: Um Padrão Que Vaza do Papel
Descubra como a arte desvela a luta de uma mulher autista em um mundo neurotípico.
Imagem gerada por IA (Canva) a partir de prompt gerado por IA a com base na análise do poema*
Realidade
A realidade é uma fera
que me cerca de todos os lados
Tanto na lembrança de dias passados
como no prenúncio de uma nova era
Ela não me submete por que assusta
mas por saber tornar um sonho fugaz
ser mais esperta, versátil e veloz
E manipular a razão (tão sutil e astuta).
Ela aspira me vencer pelo cansaço
Me derruba e então estende os braços
Me humilha e mostra ao longe a glória
Me faz sentir o seu furor me devassar
levando ao chão m atordoado olharA Escapatória: Do Verso à Gravura
Assim como no poema "Caça", a personificação da realidade a transforma em uma entidade capaz de instaurar uma atmosfera de conflito constante, não apenas físico, mas também psicológico. Isso é um fato. Está dito no poema que ela é indomável e selvagem e que cerca por todos os lados, estabelecendo uma sensação de perigo permanente e alerta constante. Também está dito que não há escapatória.
Não à toa, anos mais tarde, eu investiria na temática de escapar de um quadrado. A poética de meu trabalho visual na faculdade era alicerçada na percepção de que eu tinha essa dificuldade de caber no espaço restrito do suporte. Com o tempo, restringi uma área dentro desse suporte, da qual minha figura humana insistia, desta vez conscientemente, em vazar. Para mim, as linhas delimitatórias eram exatamente o quadrado no qual a vida tentava me encaixar, e eu não cabia. A partir dessa intenção poética do meu projeto no campo das artes plásticas, chamado "Escapatória", fica extremamente fácil reconhecer o padrão expressivo no poema. Desde a tenra idade, eu me sentia enjaulada e a fera – paradoxalmente – estava guardando a jaula.
Imagem criada por IA (Gemini)a partir de prompt gerado por IA com base na análise do poema*
Decodificando a Fera: O Mundo Neurotípico
Para uma pessoa autista, especialmente uma jovem sem as ferramentas para entender a própria mente, o mundo social e sensorial é uma fera. Não é uma ameaça distante; ela "cerca de todos os lados". Não há refúgio. É uma jaula invisível que eu comumente estendia para meu próprio corpo, que considerava esse recipiente inadequado em todos os aspectos. Abjeto do ponto de vista sensorial, o corpo a cujos odores eu mesma sentia aversão e por cuja aparência nunca senti prazer tornava-se a própria materialização dessa jaula. E a memória era o maior recurso de tortura usado pela fera. A ruminação e a ansiedade, traços comuns no autismo, eram alimentadas pela lembrança e pela projeção do futuro. O replay incessante de interações sociais passadas, tentando decifrar o que deu errado, era um martírio. As projeções que descambavam em esquetes maravilhosas de um futuro sem ponte visível com o presente tornavam a fera onisciente, me assombrando em todas as linhas do tempo.
O sonho é a interação sem esforço, o ambiente controlado e distante das agruras do presente. Talvez por isso, inacessível e constantemente frustrado. Ele se tornava um ponto de fuga e se perdia no horizonte quando a realidade, "mais esperta, versátil e veloz", se fazia presente. Essa característica da "fera" também expressa como a intuição social neurotípica parece para a mente autista, que processa a informação de forma mais literal e analítica. A comunicação neurotípica é rápida, cheia de nuances e mudanças sutis que um autista luta para acompanhar, sentindo-se sempre um passo atrás. Nesse diálogo truncado, quando o mundo reage de forma negativa a algo que para esta mente neurodivergente é lógico, sua própria racionalidade é posta em dúvida. Instaura-se o estigma da loucura. A hipervigilância ganha outros contornos: não se trata apenas de ter cuidado com a Realidade-fera, mas de conter a fera interior.
A Escrita Como Sobrevivência
O esforço contínuo de processar o mundo, de mascarar os próprios traços de inadequação, é mental e fisicamente exaustivo. A fera não precisa de um golpe final; ela apenas espera o esgotamento. A imagem de "estender os braços" após a queda reflete a demanda incessante do mundo para levantar e continuar a performar, reiniciando o ciclo de exaustão. Na humilhação de nunca alcançar a performance natural e aparentemente confortável vista nos outros, eu via a glória de existir vedada para mim. O isolamento era a única via possível.
Há um eco de "Palavras ao Mar", de Vicente de Carvalho, nesse poema, especialmente em sua finalização:
“[…] Ó velho condenado ao cárcere das rochas Que te cingem! Em vão, levantas para os céus Os borrifos das ondas desgrenhadas... Debalde! O céu, cheio de sol, se é dia, palpitante De estrelas, se é de noite, paira, longínquo e indiferente, Acima da tua solidão, dos teus clamores... Condenado e insubmisso! Como tu mesmo, eu sou Como tu mesmo! Uma alma sobre a qual o céu resplende, Longínquo céu de um esplendor distante... Debalde, Ó mar, que em ondas te arrepelas, meu tumultuoso coração Revolto, levanta para o céu, como borrifos, Toda a poeira de ouro dos meus sonhos… [...]
Amo este poema e é gostoso ouvir seus ecos.
Hoje, vejo muitos de meus poemas da adolescência como uma forma de protelar um shutdown. Há sempre a sobrecarga sensorial iminente e um sentimento de confinamento eminente. Lembro desse achaque tão intenso – externo e interno – que leva ao colapso. Antes da dissociação, do desligamento total como mecanismo de defesa, há essa tentativa de racionalizar. Faço isso ainda hoje. Escrever adia o colapso e traz algum controle sobre essa fase pré-colapso na qual o corpo funciona no automático e a máscara toma o controle. Creio que os poemas sejam também uma forma de rebelião contra esse sistema neurológico e, ainda assim, um traço dele, já que autistas gostam de ter controle sobre as situações.
Um Documento Contra a Invisibilidade
O poema "Realidade" transcende a angústia adolescente universal e se torna um documento histórico e psicológico que derruba muitos dos prontuários que documentam minha saúde mental, enquanto justifica por que o autismo feminino ainda é praticamente invisível e tratado com suspeita. Também articula a experiência interna de lutar sozinha contra um mundo incompreensível e desvela que uma mulher autista pode ser vencida por sua neurologia dissonante e continuar de pé. Se não sob a máscara da normalidade, certamente sob a máscara do trauma, da sensibilidade "feminina", da fraqueza de espírito e de todas as perfídias alocadas no corpo e na alma da mulher pelos construtos sociais que nos delimitam.
A invenção poética, aqui, é o grito silencioso de quem sente que há algo fundamentalmente diferente em sua interação com a realidade.




