A "Benção"do saber: Poemas, Sigilos, e o Lamento Mágico
Da dor à identidade. A análise de "Bênção" revela como a palavra se torna um sigilo, e o sofrimento, um lamento mágico que intui e ressignifica na poesia.

Bênção És abençoada se teu pranto é doce. Se tuas lembranças só te causam riso Que o mar de teus olhos não se aposse Que tua memória inspire o paraíso Pois um mar transborda de mim, se choro E por memória tenho um retrato pálido Onde o sonho é senil, louco e inválido Ante tal absurda figura eu mesma descoro Mas dê aos miseráveis tua benevolência À tua grandeza acrescente a ciência De que meu infortúnio não requer piedade Ele é a pérola negra do conhecimento De onde brota o justo entendimento De imensurável dimensão de eternidade
Poemas como Relicários e Sigilos
Poemas e histórias têm a capacidade de preservar sentimentos intactos. Talvez por isso busquemos conforto em histórias já lidas ou vistas quando estamos revirados por dentro. A previsibilidade da experiência estética já experimentada é confortante. Mas acho que ela aciona na memória a lembrança de um conforto que a precede e ao mesmo tempo a extrapola. Nesse sentido, poemas e histórias são relicários que nos fazem lembrar como é sentir isto ou aquilo, e nos regulam de fora para dentro.
No meu caso, como autora, alguns escritos guardam a memória de sua manufatura. Escritos à mão repetidamente, tornam-se sigilos que podem ser rompidos pela leitura atenta. Este é o caso de “Bênção”, no qual está preservada a memória de me dirigir a algum interlocutor que criticara minha dor. Talvez o sofrimento, que hoje internalizo e compartimentalizo em escaninhos com sistema autoral de identificação tão precário que infartaria alguns bibliotecários, nessa época fosse mais escandaloso. Ou, talvez, eu buscasse suporte ou empatia. Não tive nessa ocasião com essa interlocutora. Apesar da anotação do amigo Max sobre a ternura dos primeiros versos, essa ternura retém uma dor de não me sentir acolhida por alguém que me era caro. A ternura preserva a imagem desta pessoa, mas eu sei que a superioridade moral a ela creditada tem uma acidez, corrosiva o bastante para que eu não me lembre de quem se trata.

Poesia, Imagem e o Processamento Autista
Neste empreendimento de analisar minha expressão e comunicação autista, especialmente pela poesia, considerando que o senso comum determina que autistas não compreendem poesia ou metáforas, desenvolvi minhas próprias teorias. Ora, poesia é imagem. A poesia comunica de forma sintética o que um milhão de palavras não diriam com a mesma precisão. É, de certo modo, a linguagem do sonho, onde presumo que meu cérebro de processamento imparável continue seu esforço Hercúleo para me regular por meio de imagens e narrativas. Logo, me parece lógico que o cérebro autista acesse a compreensão de uma linguagem que é visual por excelência.
Mas analisemos o poema tecnicamente, na tentativa de elucidar o processamento autista nível 1 de suporte.
A Arquitetura da Ruminação: O Soneto como Contenção
A estrutura se divide em três estrofes que funcionam como uma tese, uma antítese e uma síntese. A estrutura é clássica, o que confere um tom solene e refletido ao texto. O soneto exige uma capacidade de concisão e premeditação. Não é uma arte dolosa. O soneto é sempre cometido após muita ponderação. No caso de um autista, ruminação.
Tomando a metáfora da pérola negra do conhecimento, a forma do soneto se torna tanto a contenção de uma mágoa como sua sublimação. A linguagem formal e imagética reflete um polimento interno, uma lisura obtida por atrito, no qual a racionalização do sentimento é o abrasivo que apara e obtém o brilho sutil cabível a uma pérola. O uso de metáforas como “mar de teus olhos” e “pérola negra do conhecimento” é recorrente e não deveria espantar nenhum negacionista do autismo nível 1 de suporte, pois, são imagens aprendidas. E, a meu ver, em um cérebro que se comunica prioritariamente por imagens, é fácil construir o pressuposto de que as metáforas são figuras de linguagem mais visuais do que supõe a nossa vã filosofia.
Análise das Estrofes
Primeira Estrofe: A Bênção da Leveza
A primeira estrofe narra uma história de não acolhimento e empatia negada, como já dito. Há ainda uma grande leva de pessoas dispostas a medir o sofrimento alheio por uma escala universal, quando a empatia precisa ser calibrada de indivíduo a indivíduo, ou não é empatia, é caridade coercitiva, que impõe um modelo.
Segunda Estrofe: O Fardo da Memória Dolorosa
Aqui, o eu lírico se apresenta como a antítese da figura abençoada. Há uma coerência narrativa: apresenta-se o drama e os personagens. O conflito está instaurado e claramente descrito. Esta estrofe mergulha na experiência do trauma e da melancolia, na forma de um mosaico. Surge a cena como se azulejos de diversos motivos e padrões emprestassem fragmentos de seus grafismos e cores para uma nova imagem. Veja só: com uma metáfora visual é mais simples de entender, não é mesmo?
Terceira Estrofe: A Síntese e a Ressignificação do Sofrimento
Mas dê aos miseráveis tua benevolência
À tua grandeza acrescente a ciência
De que meu infortúnio não requer piedade
A terceira estrofe é a virada argumentativa do poema. E também revela uma mudança de métrica iniciada já no último verso da segunda estrofe: o poema tem 7 versos em decassílabos e 7 versos em dodecassílabos (ou alexandrinos). O sexteto final não retorna à métrica original. Em vez disso, ele constrói uma nova regularidade, mais grandiosa e expansiva com os versos Alexandrinos. Isso mostra que a resolução não é um retorno à “normalidade”, mas a criação de uma compreensão própria, mais vasta e profunda. E tanto a forma quanto a virada argumentativa, para mim, refletem a ruminação e o esforço para processar o que foi vivenciado. E também a rigidez cognitiva. Eu era muito mais dura e implacável do que hoje. Capaz de me privar de tudo para não ter menos do que me parecia certo. Por isso, talvez, o poema guarde essa memória tão densa ainda que abstrata, de sua composição.

A Pérola Negra: Da Piedade ao Conhecimento
A grande revelação está na metáfora final: o sofrimento é a “pérola negra do conhecimento”. Assim como a pérola, que nasce da irritação e da dor de uma ostra, o conhecimento mais profundo e autêntico nasce da adversidade. Este sofrimento permite um “justo entendimento” sobre a vida. Como, por exemplo, o fato de que empatia e piedade não são a mesma coisa. Eu “tenho dó” de muitas coisas, mas não mexo um dedo para ajudar enquanto as diminuo como objeto digno de pena. Já a empatia é um envolvimento emocional que acolhe. Eu era miserável de acolhimento. Mas afortunada demais para a piedade alheia. Talvez orgulhosa demais, como o próprio terceto final exprime ao me engrandecer pelo sofrimento transmutado em objeto de valor.
A “pérola negra” é uma imagem poderosa que encapsula a ideia de que a beleza e o valor podem surgir das experiências mais sombrias, conferindo ao eu lírico uma dignidade e uma profundidade que transcendem a simples piedade ofertada. Bela imagem. Contudo, ao digitar o poema que nunca conheceu a virtualidade, escondido que estava em um dos volumes impressos de “Retrato das Sombras”, me vi considerando o poema como algo quase profético e talvez mais intuitivo do que parece. Sim, eu flerto com misticismos com a mesma paixão com que os renego. E embarcada nessa reflexão acerca das qualidades proféticas de “Bênção” cometi o ato falho de digitar “identidade” em vez de “eternidade”, no último verso da última estrofe.
Sim, hoje, com um laudo neuropsicológico, eu posso ler “Bênção” com essa ambiguidade de um escrito sublimador de dores localizadas em outro tempo e como um salmo profético.
Um Lamento Mágico: O Documento da Jornada
Meus poemas podem ser lidos sempre como esse diálogo interno em uma tentativa de autodefinição recidiva em contraponto a verdades existenciais ou sistêmicas que me desregulam. Entendo metáforas com mais clareza do que compreendo e sou capaz de lidar com convenções sociais desenraizadas de sua construção lógica. Muito provavelmente minha interlocutora seguiu convenções sociais despersonalizadas e percebi a superficialidade de sua posição, o que não impediu o estrago de suas palavras.
Eu poderia tecer comentários acerca da clara caracterização de um meltdown no poema e do evidente sentimento de inadequação que essa caracterização, claramente atravessada pelo julgamento alheio, demonstra. Mas talvez caiba dizer que este poema passou a ser um registro do motivo de meus meltdowns terem se tornado implosões, dissociações e eventos privados de choro doído acionado por música.
Também poderia me acolher com empatia e remover o que chamei de orgulho para elevar o poema à categoria de lamento mágico, tecitura capaz de ressignificar a realidade e projetar outro futuro. Assim, o aventado orgulho se torna uma declaração de independência e dignidade e uma busca irrefreável pelo conhecimento libertador.
Considerando o contexto e desdobramentos, “Bênção” se revela um poema de uma maturidade e autoconsciência notáveis, dada a pouca idade da jovem que o escreveu. E me faz amá-la e acolhê-la com a empatia que ela reclamava neste poema. E de qualquer modo “Bênção” é agora um documento da jornada de uma jovem neurodivergente que, décadas antes da popularização do conceito, conseguiu articular o sentimento de alienação, a dor da comparação com padrões neurotípicos e, o mais importante, conseguiu intuir sua própria neurologia.
Bênção – versão 2025
És abençoada se teu pranto é doce
Se tuas lembranças só te causam riso
Que o mar de teus olhos não se aposse
Que tua memória inspire o paraíso
Pois um mar transborda de mim, se choro
E por memória tenho um retrato pálido
Onde o sonho é senil, louco e inválido
Ante tal absurda figura eu mesma descoro
Mas dê aos miseráveis tua benevolência
À tua grandeza acrescente a ciência
De que meu infortúnio não requer piedade
Ele é a pérola negra do conhecimento
De onde brota o justo entendimento
De imensurável dimensão de identidade

