A Arqueologia de um Grito Silencioso
Como um poema antigo revelou a conexão entre o silêncio da alma, a sobrecarga sensorial e o diagnóstico de autismo na vida adulta. Uma autoetnografia.
Imagem criada por IA, tendo o poema e “ o grito” de Edvard Munch
Preciso gritar Mas da alma só ouço silêncio As palavras se atrofiam no pensamento Prendi na ideia o poder de sonhar e já não passa de sonho tudo o que penso E já não passa de sonhar todo o meu intento Aprendi do sonho que é difícil acordar do mundo, para o mundo explicado por extenso Sendo o tempo dividido em dor e lamento Prendi na minha essência a essência de sonhar O sonho é espaço infinito, império imenso que viceja na alma e pulsa em meu peito Não, não preciso de palavra para extravasar o clamor que escuto indecifrável e denso tentando tomar a forma de um lamento
A Arqueologia de um Poema Perdido
Este é um daqueles poemas que parecem correr atrás do próprio rabo sem chegar a lugar nenhum e, presumo, por isso tenha permanecido em algum caderno, sem participar do conceito da obra chamada “Retrato das Sombras”. Escrito em 2 de abril de 1997, ele foi destacado em algum momento de seu endereço original e afixado em um dos volumes impressos aos quais não mereceu pertencer. A presente releitura apegou-se ao mote: o grito. Cerca de 11 anos depois, eu escreveria “Onde está esse grito?” e o deixaria em um caderno inacabado, até uma releitura posterior considerar que ele era suficiente. Minha incapacidade de terminá-lo explicitava a necessidade e a ausência do grito: “liberdade e aflição que eu evito”.
Foto da escavação
Domando o Grito: Um "Processo Civilizatório"
Essa relação estabelecida entre os poemas trouxe outra: aos 11 anos, aturdida pela puberdade e pela crescente bagagem de decepções que se agregava aos meus aprimoramentos cognitivos e sociais, eu gritava. “Niña”, meu apelido, era a faísca, quando eu inteira era um pavio embebido em toda a sanha inflamável que possa habitar o corpo humano. Eu simplesmente gritava, como se isso pudesse amainar o que hoje identifico como ansiedade. Para superar essa fase, escolhi a autonomia e fui trabalhar, faltando seis dias para completar 12 anos. Isso trouxe um afastamento do ambiente que me aturdia e um senso de propósito que foi mais eficiente do que o grito para me silenciar. Eu sabia que o grito era inadequado. Temia a repercussão tanto quanto a agonia de ser o estopim de minha própria vergonha quando a faísca coruscante me ativava.
Crescer, para mim, significou controlar o grito. Ainda assim, em muitos momentos nos quais minha fala repercutia negativamente, eu deduzia que o problema estava no tom de voz, e não no conteúdo.
Teste do carbono 14
Decifrando o Silêncio: Uma Leitura Autista
O poema Preciso Gritar desvela ainda uma outra preocupação do meu “processo civilizatório”: a fuga pela imaginação. Nessa fase, meus domingos eram de silêncio, no escuro e imóvel, vagando pelas narrativas que criava. Eu me cobrava estar no mundo e produzir. Tinha essa urgência de ser e acontecer e, ao mesmo tempo, fugia por medo de me expor ao mundo “explicado por extenso”.
Sei que os muitos gritos aos 11 anos demarcavam meu limite. E os gritos não expressos aos 16 também.
O Alarme Antes do Desligamento
Alexitimia e shutdown competem para descrever o verdadeiro mote deste poema. Mais uma vez, o silêncio do narrador interno anuncia o desligamento do sistema. O alarme soa no poema tanto quanto o grito é improferível. A sobrecarga inexpressável é a precursora. O grito nunca foi de raiva ou tristeza, mas uma forma de aliviar a pressão interna de um sistema nervoso saturado.
A resposta a essa necessidade, no entanto, é o "silêncio" da alma. Isso descreve com perfeição a experiência do desligamento autista (shutdown): um estado em que, diante de um estímulo excessivo, o cérebro "desliga" as funções de comunicação externa como forma de autoproteção. A sensação de que "as palavras se atrofiam no pensamento" deixa de ser uma metáfora poética para se tornar uma descrição quase literal da perda de acesso à linguagem funcional sob estresse extremo.
O Império Interior: Imaginação como Santuário
A descrição do sonho como "espaço infinito, império imenso” indica um ponto de fuga, a busca por um lugar seguro, dotado de lógica, padrões, interesses profundos e coerência. O silêncio da alma assusta, pois sinaliza a perda de controle e resvalar para o mundo dos sonhos e derivar para um interesse específico ajuda na autorregulação e, muitas vezes, evita o shutdown completo. A ausência se torna parcial. Em um tempo sem internet, havia apenas o olhar para dentro e a criação de mundos imaginários. O poema parece refletir sobre esse processo de entrar e sair dessa zona segura criada na imaginação. Tanto a entrada quanto a saída são negociadas com a realidade palmo a palmo. O mundo real é feito de incertezas e, portanto, de lamentos, e essa percepção não é um exagero adolescente, mas a constatação honesta de quem se sente um estrangeiro em sua própria realidade.
O Clamor Indecifrável: Sentir sem Nomear
A conclusão do poema é talvez a mais reveladora. A negação da necessidade da palavra e a descrição do "clamor que escuto indecifrável e denso" são uma articulação brilhante do que hoje conhecemos como alexitimia — a dificuldade de identificar e nomear as próprias emoções. Aquela menina sentia algo imenso e poderoso, mas essa sensação era crua, densa, sem um rótulo. Ela ainda estava "tentando tomar a forma de um lamento". É a percepção de uma emoção em seu estado mais fundamental, antes que a mente consiga categorizá-la como "tristeza", "medo" ou "angústia". Para uma jovem de 16 anos em 1997, sem qualquer referencial, conseguir observar e descrever esse processo interno com tal precisão é notável, e sinto-me orgulhosa dela.
Uma Mensagem na Garrafa
Este poema é um artefato na "arqueologia do eu", instaurada pós-diagnóstico. Sem saber que pertencia a um neurotipo diferente, aquela jovem autora usou a única ferramenta que tinha — a poesia — para mapear sua própria neurologia. O poema documenta a experiência autista internalizada (frequentemente associada ao feminino): uma imensa vida interior em contraste com uma expressão externa silenciosa ou paralisada. E ainda valida que o silêncio autista não é vazio, mas uma densidade de informações e sentimentos não processados ou não verbalizados. A adolescente não apenas sentiu, mas se observou sentindo, o que corrobora a forma como me sinto atualmente, pós-diagnóstico. Isso me obriga a retomar a analogia do sonho, no qual somos o protagonista e, ao mesmo tempo, vemos de fora o desenrolar da cena.
Tenho esperança de que essas reflexões acerca da jovem autora que fui sirvam como tradução de uma experiência autista nível um de suporte. Prosseguirei com minha autoetnografia, tendo isso em mente. E é enternecedor ouvir a voz dessa jovem presa em uma ilha neurológica, enviando uma mensagem em uma garrafa que, décadas depois, posso finalmente decifrar.
Obrigada, “Niña”. Saiba que você cresceu e não é mais uma menina sem nome.
Você se chama Oryanna.





